Opinião

“Liquidação” em idioma gringo

“Liquidação” em idioma gringo
Crédito: ALISSON J. SILVA

Cesar Vanucci *

“Eu vivo em Belo Horizonte, e não em Miami” (Argumento de freguês, desfazendo compra na loja)

Como é do conhecimento do reduzido, posto que leal e culto, leitorado deste desajeitado escriba, empenho-me há anos em demonstrar que o emprego de disparate vocabular estrangeiro para classificar coisas óbvias do cotidiano é de atordoante panaquice, caracterizando ainda limitação intelectual e indigência cívica. A historinha vinda a seguir enquadra-se nesta linha de considerações.

Investido, galhardamente, da prazerosa condição de avô-provedor, acompanhou, com a cara-metade, o genro e a filha gestante, nas vésperas da chegada de gêmeos, numa incursão demorada por lojas da Savassi, à cata de produtos que viessem complementar os enxovais. Gastou meia sola do calçado na exaustiva peregrinação, conforme suas próprias palavras. Aguardou, com santa paciência, a febricitante movimentação dos diligentes vendedores, nas quase duas dezenas de estabelecimentos visitados, até o aguardado instante da escolha definitiva, pela futura mamãe, da batelada de produtos. Na hora de sacar o cartão de crédito e liquidar a fatura, para estupefação geral, retrocedeu bruscamente no propósito de bancar a despesa. “Empacou que nem mula cabeçuda com cisma súbita da trilha a percorrer”, conforme descrição da cena feita, mais tarde, pelo genro, pequeno sitiante em Lavras Novas. “Nessa loja eu não gasto um vintém de meu precioso dinheirinho”, afirmou, em tom categórico, desconcertando os integrantes da patota familiar, o gerente, a caixa e as solícitas vendedoras.

Quando indagado das razões da inopinada decisão, ele apontou, gesticulante, para um imenso painel na vitrina onde vinham estampados em letras garrafais os vocábulos “off” e “Sale”, afirmando alto e bom som: “Vivo em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, e não em Miami. Não estou a fim de digerir, de jeito maneira, esse modismo de babaca. Anúncio de redução de preço dispensa essas frescurices vocabulares estrangeiradas. Esse negócio de dar nome em inglês ou outro idioma, que não o nosso, para coisas óbvias do cotidiano é um desrespeito e um estrupício.”

Foi assim que as mercadorias, já embaladas, voltaram às prateleiras. A esposa e filha, com a concordância obviamente silenciosa do genro, desculparam-se como puderam com o pessoal, registrando entre resmungos, olhares lacrimejantes, sua irritação e desconforto. “Seu pai é um estraga prazeres, um ranzinza de marca”, comentou, entre dentes, a esposa, envolvendo a filha gestante num abraço solidário. A filha completou a explicação a respeito do gesto extremado do pai: “Quando ele enguiça com alguma coisa, sai de perto. ninguém consegue demovê-lo.”

Na verdade, os rogos lamurientos da patroa não sensibilizaram em nada o marido. Impassível que nem bonzo cambojano, ele não arredou pé da posição radical assumida. Fugiu de qualquer conversa no trajeto de volta à residência.

Horas mais tarde, ânimos serenados, baixada a poeira, celebrou-se em nome da harmonia familiar, entre os participantes da malograda operação de compra, um arranjo conciliador. O dinheiro reservado às aquisições das peças dos enxovais acabou sendo liberado, com a exigência do provedor, aceita pelos demais, de que seriam evitados, na nova ofensiva de visitas aos pontos de venda, os que ostentassem na fachada ou nas vitrinas “impropérios linguísticos” assemelhados aos que tanta repulsa causaram ao chefe da tribo familiar. Trato feito e cumprido, os resultados colhidos na peregrinação a outro conjunto de lojas que não constaram do roteiro anterior revelaram-se altamente compensadores. “Compramos as mercadorias desejadas por preços infinitamente inferiores” – informou, exultante, a filha ao pai, na volta das compras, acrescentando: “- Sua bronca foi inspirada, meu velho”.

Quase que ao mesmo tempo, o genro chegou com uma baita novidade, recebida como vantagem extra: a loja da Savassi resolveu desfazer-se, subitamente, do painel com os dizeres causadores de todo o enguiço.

* Jornalista, presidente da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais ([email protected])

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