Municípios também morrem de sede!

É no município que as pessoas moram, vivem, consomem água e energia – ou padecem com racionamentos, escassez e até falta de ambos os produtos que são vitais. Apesar de tudo isso, os mais de 5.500 municípios brasileiros não têm nenhuma ingerência ou autonomia sobre a gestão dos seus recursos hídricos. Isso acontece porque a Constituição de 1988 optou pelo duplo domínio sobre as águas, delegando-o a estados e à União – e isso desperta sempre acaloradas e inflamadas discussões.
Nesse debate, o sentimento da corrente que pensa assim é o de que a Constituição criou um complicador, uma vez que o ideal seria o domínio único – o da União. O argumento é o de que, dessa forma, seria mais fácil definir responsabilidades e ações de gestão unificadas. Como diz o dito popular, cachorro que tem mais de um dono acaba morrendo de fome.
Entendemos que esta é uma visão simplista. Primeiramente, precisamos compreender que a designação do domínio não transforma o poder público estadual ou federal em “proprietário” da água, mas, sim, em gestor responsável pelo bem público água e deve exercê-lo em benefício e no interesse de todos. Em seguida, conforme constatado em todo o mundo, é preciso entender que os principais problemas relacionados à disponibilidade de água não são provocados por uma escassez verdadeira – na verdade, são consequência da má gestão dos recursos hídricos disponíveis. Finalmente, conforme citado por Richter (2015): a escassez da água é problema de gestão que se sobreleva, não é global em sua expressão física e, sim, altamente localizada.
É mais que temerário, por ser impossível, a centralização da gestão dos recursos hídricos em um único domínio em um país de dimensões continentais, big-diverso, com regiões que vão de muito úmidas a semiáridas e áridas. Além disso, é um país organizado, política e administrativamente, sob a forma de uma federação composta pela União, estados e municípios. E, como já mencionado, é nos municípios que se dá a relação humana com a água. Portanto, verdadeiramente, os problemas são locais.
Em aparente contrassenso, considerando-se a exclusão dos municípios da gestão dos recursos hídricos, a Constituição de 1988 atribui aos municípios a responsabilidade por todos os assuntos de interesse local – são, portanto, responsáveis pelo ordenamento territorial, com impacto indiscutível sobre os recursos hídricos. Destaque para o fato de que os municípios são também os titulares dos serviços de saneamento, que englobam quatro componentes: abastecimento de água, esgotamento sanitário, gestão de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais.
Fica claro que convivemos com um intrincado e até confuso modelo de gestão dos nossos recursos hídricos. Se de dominialidade única, defendida por alguns, ou a dupla dominialidade, defendida por outros e conferida pela Constituição a estados e União, resta a conclusão de que os municípios não são responsáveis pela gestão direta dos recursos hídricos contidos em seus territórios. Diante do exposto, há que se perguntar: como não?
Na verdade, nenhum dos posicionamentos se sustenta facilmente – o tema é complexo e ainda não pacificado. A despeito da responsabilidade intrínseca do município, por ser onde as pessoas vivem, colocando-o mais próximos das demandas, sua escala de atuação político-administrativa não permite uma visão sistêmica das bacias hidrográfica e hidrogeológica onde está inserido – e essa é uma exigência principiológica – questão sine qua non – da boa gestão das águas. Outro fator dificultador é o fato de que a maioria dos municípios – 80% – não tem autonomia orçamentária.
De outro lado, a presença dos municípios como usuários em organismos de bacia – os comitês – como a principal, talvez a única, forma de interação municipal na gestão de recursos hídricos, é uma realidade que está quilometricamente distante de ser satisfatória. Impõe-se, portanto, com certeza, uma reflexão mais robusta, um novo pensar institucional para definição do correto papel dos municípios na gestão de recursos hídricos.
Acreditamos, sinceramente, que menos complexa que a revisão constitucional e legal para esclarecer e dimensionar adequadamente os papéis dos entes federados na gestão dos recursos hídricos, a solução pode estar na informação e no conhecimento. É fundamental que os municípios, sua população, seus líderes (prefeitos e vereadores) compreendam bem a importância que têm na gestão dos recursos hídricos abarcando o uso, controle e preservação. Todos precisam entender o quanto é importante sua participação para transformar os processos até hoje ineficientes da governança hídrica. Só assim, podermos evitar o colapso hídrico que já dá sinais evidentes.
Os municípios precisam assumir uma linha de conduta mínima, independentemente das competências legais estabelecidas para sua participação efetiva na gestão de recursos hídricos. É preciso estabelecer planos dedicados ao conhecimento das intermunicipalidades das águas superficiais e subterrâneas nos quais cidadãos e a esfera política se farão conscientes da necessidade de intercâmbios com as regiões vizinhas, para a evolução e propagação do conhecimento das águas – suas funcionalidades naturais, fragilidades e potencialidades.
É preciso desenvolver maneiras eficazes de ensinar sobre o sistema integrado das águas, partindo da compreensão da natureza dos ciclos hidrológicos, eliminando, especialmente, os equívocos sobre as águas subterrâneas, porção invisível do ciclo. É preciso conhecer a importância da água – é nessa “hidroiniciação” cidadã que se assentam as mais expressivas formas de “cuidar” desse recurso com a construção de políticas públicas responsáveis pelos mais altos índices de desenvolvimento humano.
Em 2020, Minas Gerais foi o estado que recebeu o maior volume em compensação financeira pelo uso de recursos hídricos, para a produção de energia em Furnas. Foram R$ 61 milhões distribuídos entre o Estado e 34 municípios. Um passo importante seria que estes recursos fossem utilizados, na região, em um projeto estruturado para o início de uma engrenagem da governança “hidrossolidária”, começando com a instalação e operação de redes dedicadas de monitoramento e da capacitação da sociedade, assim com sua participação e responsabilização. Medir, conhecer, capacitar, valorar para cuidar e governar, é o único caminho para a segurança hídrica, e não pode haver agenda mais importante. Sem água não há saúde, educação, produção, emprego e renda. Sem água não há nada.
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