O Corvo (XCXIII)

Tão logo o táxi deixou Virgínia no endereço de Annick, ela reconheceu a casa da amiga. Embora tivesse ido lá há muito anos, tudo permanecia como antes.
Apenas o pequeno portão de madeira, localizado no centro do terreno, e que separava a propriedade da rua, parecia ter sofrido uma reforma. A tramela de madeira que o trancava fora substituída por uma moderna fechadura.
A alguns metros do portão, na extremidade esquerda, um muro estendido lateralmente estabelecia a fronteira com o terreno vizinho. No lado oposto, um grande portão dava acesso à garagem, na qual se via um velho Citroën preto estacionado.
O acesso à porta de entrada da casa era feito por uma calçada, na qual quatro pessoas podiam caminhar sem atropelos. A calçada era delimitada por uma pequena elevação de pedras superpostas; nela se notavam ramos secos, que deveriam, tão logo o inverno se despedisse, dar lugar a verdejantes e pequenos galhos floridos.
Uma extensa varanda, protegida por grandes janelas de vidro, deixava à mostra uma mesa de centro com um livro aberto e quatro cadeiras brancas.
— Ah, essa Annick não larga os livros — pensou Virgínia.
Chamou pela amiga, anunciando a sua chegada, mas não obteve resposta. Resolveu, então, abrir o pequeno portão e caminhar até a varanda. Na metade do caminho, parou e deixou que seu olhar pousasse sob o carro estacionado.
— Um velho Citroën; nunca imaginei que a Annick tivesse um carro como esse, pelo menos nos últimos dez anos — pensou.
Seguiu adiante, e uma vez diante da varanda, novamente chamou pela amiga. Como antes, sua chamada ficou sem resposta. Resolveu girar a maçaneta da porta que dava acesso à casa; ela sabia que Annick não fechava a porta quando saía para fazer alguma coisa por perto.
Como previra, a porta estava aberta. Entrou, olhou o livro aberto sob a mesa de centro e fez um esforço para se lembrar do autor.
— Esse não conheço. E tampouco ouvi falar dessa editora, coisa estranha… A revista que comprei na gare também trazia entrevistas com gente de quem nunca ouvi falar. Estou mesmo desatualizada — disse para si mesma, com um certo tom de lamento.
Deixou a varanda e foi direto à sala de estar. Os móveis que compunham o ambiente pareciam os mesmos.
Aproximou-se da grande estante, que ocupava toda a extensão de uma das paredes laterais, e começou a examinar os livros.
Em seguida, tentou encontrar uma explicação para o fato de a biblioteca de sua melhor amiga ser quase que integralmente composta por livros de direito civil e criminal.
Por pura e simples curiosidade, retirou um da estante, sentou-se em um dos sofás e o abriu.
Havia uma pequena folha datilografada dentro dele. Deixou o livro de lado, mas, curiosa, retirou a folha de dentro, com o cuidado de ver a página na qual estava. Começou, então, a ler o texto.
Ao longo dos tempos, as ideias dos grandes pensadores têm influenciado os costumes, a cultura e servido para, em algumas situações, justificar ações políticas.
No direito penal, a filosofia positivista, que encontra no mecanicismo seu esteio principal, influenciou, no passado, o pensar jurídico e acabou justificando, nos regimes políticos de exceção, certos valores para obtenção da culpabilidade dos presumidamente considerados criminosos.
Para o bem da humanidade ou, pelo menos, para parte dela, a situação mudou e, mais uma vez, a influência do pensar filosófico, agora kantiano, promoveu, sob o ponto de vista ético e moral, um resgate do valor da confissão, oferecendo-se ao infrator a oportunidade de reconhecer seus erros e arrepender-se, atenuando, assim, a sua pena.
Virgínia sabia que Annick era bastante eclética e erudita, mas podia jurar que tal texto não fora escrito por ela.
Levantou-se e foi à cozinha, situada no fim de um longo corredor. Abriu a geladeira, pegou um copo de água e retornou à sala. Sentou-se no mesmo local onde lera o texto, levou o copo à boca, satisfez-se com um gole e o pousou na pequena mesa ao lado. Seus olhos começaram a dar sinal de que em breve se fechariam, anunciando que o sono logo chegaria.
*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”
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