O transporte é coletivo

Nos últimos meses Minas Gerais tem acompanhado uma série de discussões sobre o transporte coletivo intermunicipal, especialmente por causa de um novo decreto promulgado pelo Governo do Estado, o Decreto 48.121/2021, que autoriza a prestação de serviço de transporte de passageiros sem licitação.
Na prática este decreto abre espaço para os chamados “aplicativos de ônibus”, que prometem oferecer passagens mais baratas. Isso, no entanto, esconde um problema grave, que precisa ser discutido com toda a sociedade: a continuidade da prestação do transporte de passageiros em médio e longo prazos.
Um dos principais argumentos para a aprovação do decreto faz referênciaàa chamada ‘livre concorrência’, que é garantida na nossa Constituição. Ela, entretanto, não é absoluta e tem limites em algumas áreas. Se, por exemplo, alguém quiser abrir um banco não basta colocar uma mesa na Praça Sete, em Belo Horizonte, e sair emprestando dinheiro. Esse tipo de atividade é regulamentado, tem condições e critérios a serem seguidos, inclusive com agência reguladora que define regras para esse setor.
Da mesma forma ocorre com outras atividades como o transporte intermunicipal. Ele precisa respeitar determinadas regras, até porque pode colocar em risco a vida das pessoas. É por isso que a chamada ‘livre concorrência’ não é tão livre assim. Tem de obedecer regras dadas pela característica dos serviços. O transporte público é complexo, que merece atenção e necessita da permissão dada pelo Estado, acompanhando todos os critérios necessários para a boa prestação desse serviço público.
O transporte permanente de passageiros entre os municípios, esse que necessita da permissão do Estado, é diferente do que chamamos popularmente de ônibus de fretamento, que tem outro objetivo. Vamos supor que alguém com sua família e amigos queira sair de Belo Horizonte e ir a Cabo Frio para uma temporada – não agora na pandemia. Então, nesse caso, pode fretar um ônibus, dar os nomes dos passageiros, dizendo o dia e a hora que quer ir e voltar. Não há nada errado nisso. Isso é um fretamento legal!
Mas o que foi regulamentado em Minas não é isso e me parece um grave equívoco. É, na realidade, uma concorrência desleal com os ônibus regulares. Por meio desse decreto, os ônibus de fretamento passam a ser uma espécie de ônibus normal. Isso faz uma nódoa grande na segurança jurídica, porque se rompe um contrato estabelecido entre o poder público e a empresa permissionária que tem como objetivo garantir o bom funcionamento do serviço em todo o Estado.
Vejamos como funciona o sistema de transporte intermunicipal. Hoje, o Estado realiza uma licitação que permite, por exemplo, que a empresa X faça a linha entre Belo Horizonte e Juiz de Fora. A empresa, portanto, apresentou suas documentações, satisfez as exigências de um edital, pagou ao Poder Público um valor alto, chamado outorga, para ter a possibilidade de exercer essa atividade econômica. Além disso, ela não vai explorar apenas o trecho Belo Horizonte – Juiz de Fora. Vai ter que atender também outros trechos que não dão lucro, cidades menores como Lima Duarte, Bias Fortes, Goianá, que têm uma população muito menor, mas que também necessitam da atenção do Estado.
Com o decreto, vem uma outra empresa que não participou da licitação, não apresentou documentos, não pagou ao Estado para exploração do trecho, que não tem nenhuma regulamentação e que com sua independência coloca um veículo para fazer concorrência a esse ônibus regular. Isso é grave porque não prejudica só as empresas permissionárias, mas o próprio Estado e o cidadão.
Isso, em médio prazo, pode levar ao abandono de atendimento às cidades menores. Se aceitarmos isso agora, o cidadão que mora na cidade pequena não terá ônibus para ir à Capital ou a outra cidade, porque a empresa que lhe servia quebrou em razão da concorrência desleal. É por isso que esse decreto me parece ilegal.
É importante marcar a diferença dessa questão com o caso do Uber x Táxi. O que percebemos hoje é que eles conseguem coexistir, atendendo cada qual a seu público. O setor do transporte intermunicipal de passageiros é diferente. No caso dos ônibus existem as linhas regulares que têm a obrigação com determinado trecho. Com passageiro ou sem passageiro o ônibus vai sair. E precisa sair mesmo, porque atenderá a passageiros de outros municípios.
No momento em que se estimula o transporte de fretamento a fazer o transporte regular dos melhores trechos o que vai acontecer é uma precarização dos serviços, de tal modo que as linhas regulares que servem às cidades pequenas vão deixar de existir. Em um sistema planejado para um Estado tão grande como Minas Gerais a linha rentável que atende Montes Claros, Uberlândia, Uberaba, Juiz de Fora, Governador Valadares é compensada com linhas deficitárias que atendem as cidades menores.
No momento em que essa linha regular passa a não ter faturamento na linha maior – porque o clandestino, em uma concorrência desleal, está recolhendo tudo – é claro que a empresa não vai atender também as cidades menores. Essa, portanto, é uma questão de política pública que deve ser coletiva e precisa atender à sociedade como um todo.
É evidente que todo cidadão tem o direito de exigir a melhoria dos serviços públicos. Essa melhoria constante é necessária e todos reconhecemos isso. Os ônibus regulares têm que melhorar o seu atendimento, garantir os horários e o conforto do usuário. Isso é uma exigência e devemos sempre vigiar. Mas não podemos sob esse manto destruir todo um sistema que existe e que garante acesso e transporte a milhões de mineiros nas cidades médias e menores.
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