Os poetas sabem das coisas
Cesar Vanucci*
“Homens/ sufocados/ pela/ lama/ que/ criaram”.
(Elizabeth Rennó, presidente da Academia Mineira de Letras)
A poesia é necessária. E os poetas são imprescindíveis. A poesia é essencial. Projeta a vitalidade dos mundos visível e invisível. Feérica explosão da alma, revela-se, às vezes, suave que nem brisa. Noutras, lembra ruflar marcial de tambores.
As narrativas poéticas alimentam sonhos. Celebram a alegria da vida. Compõem elos de fraternidade, ao ocuparem-se dos humanos tormentos. As narrativas poéticas fazem acompanhamento da peregrinação de todos nós pela pátria terrena, sem se descuidarem da espreita interrogativa dos fenômenos inexplicáveis que nos circundam.
A fala, agora, é de Shakespeare: “O olhar do poeta, girando em delírio, vai do céu para a terra, da terra para o céu; e no que a imaginação vai tomando corpo, sua pena cativa a essência das coisas conhecidas e desconhecidas, moldando-lhes a forma e dando a um nada construído no ar um nome e um ponto de referência.”
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Mariana (tinha que ser lá, não é mesmo?) é o epicentro de uma efervescente corrente do pensamento poético. Por obra e arte de Gabriel Bicalho, Andreia Donadon Leal e J.B. Donadon-Leal, aglutinando outros intelectuais de reconhecido mérito, irrompeu ali, esparramando-se Brasil afora, atraindo atenções ainda noutras paragens literárias em que predomina nosso idioma, o festejado movimento dos poetas aldravianistas.
Os talentosos cultores dessa modalidade de manifestação poética explicam o que vem a ser esse irradiante projeto cultural. Partindo do princípio de que o exercício da criatividade encontra guarida na poesia, chamam atenção para a “poesia sintética, criada na Primaz da poesia mineira, Mariana”. “Amálgama do caminho, da via, com a possibilidade da abertura de portas, a Aldrava – salientam eles – é a aldravia que, em seis palavras, constrói continente semântico de abrigo a múltiplas significações”.
O que se dá a conhecer, então, a partir daí, ao mundo das letras, permanentemente sacudido pela inquietação que povoa o espírito humano, com o surgimento das aldravias, é “um verdadeiro poema sintético”, tanto na forma, como na atitude poética. A Sociedade Brasileira dos Poetas Aldravianistas, congregando hoje mais de uma centena de cultivadores de aldravias, faz prova cabal do poder dessa corrente do pensamento poético.
Já andou botando pra circular uma sequência esplêndida de livros que falam de sua cativante proposta. A inspiração lírica da turma entoa cânticos de beleza estética acolhidos com simpatia pela grei literária. Os aldravistas esmeram-se na construção de relações sociais justas e respeitosas, estribados na ardente esperança de um mundo melhor. Reconhecem-se enquadrados na definição de Giono, intelectual francês: “O poeta deve ser um professor de esperança”.
Temos em mãos o livro Mineralamas” (IV da coleção das Aldravias). A obra foi organizada por Andreia Donadon Leal, Gabriel Bicalho e J.B.Donadon-Leal. Sessenta poetas do movimento marcam presença nas 300 páginas da publicação, prestando tributo aos atingidos pela tragédia da Barragem do Fundão, em novembro de 2015, focando o olhar angustiado no povoado de Bento Rodrigues e em áreas situadas ao longo dos rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce, devastadas pelo mar de lama. Fica claro que a justa indignação expressa nas aldravias, em perfeita sincronia com o sentimento das ruas, tem validade tanto para a catástrofe de Mariana, quanto para a de Brumadinho, municípios siameses no dolorido parto da predatória exploração mineral que ronda sinistramente, em tanto lugares, a comunidade brasileira. Os poetas, consoante registram, levantam mais do que um protesto. Emitem sinais de alerta acerca das vulnerabilidades e inconveniências de projetos de desenvolvimento que se entreguem docilmente à vandalização dos recursos naturais, alvejando a dignidade humana.
Selecionamos abaixo, para desfrute do culto leitor algumas das centenas de aldravias produzidas nas páginas do “Mineralamas”. Luiz Carlos Abritta: “Barra/ Longa/ longa/barra/pesada/barra”; Mariana/no/céu/rejeitos/no/inferno”. Juçara Regina Viegas Valverde: “solo/contaminado/homens/contaminados/povo/minado”. Izabel Eri Diel Camargo: “chuva/ de / bênçãos / conforta / povo/ desabrigado”. Ciro Mascarenhas Rodrigues: “outrora/ doce/ rio/ agora/ amargo/ desvario”; “simbora/ fauna/ flora/ Mariana/ triste/ chora”. Auxiliadora de Carvalho e Lago: “árvores/ renascerão/ nas/ margens/ haverá/ressureição”. Andreia Donadon Leal: “minerar/ pão/ sem/ estragar/ pão/ nosso”; “lama/ afamou-se/ criando / status / de / tissulama”. Elizabeth Rennó: “a/ lama/ revestiu/ o/ vale/verde”. Else Dorotéa Lopes: “Muitas / lágrimas / por / léguas / de /lama.” Gabriel Bicalho: “que/ assim/ fosse / lama / não/ fosse!”; “minerador/ na/ lama/ vale/ minerar/ dor?”. J.B. Donadon-Leal: “lágrima / de/ lama/ chora / perda / definitiva”; “Fundão / expõe / ferida / aberta / jamais / cicatriz”. J.S Ferreira: “Bento Rodrigues / deserto / inóspito / mar / morto / Minas”. Vilma Cunha Duarte: “mortos / e / sonhos / jazem / na / podridão”. Zaira Mellilo Martins: “vidas / ceifadas / sonhos / desfeitos / memória / mutilada”.
Como dito lá em cima, os poetas sabem das coisas.
* Jornalista ([email protected])
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