Outros olhares sobre a reforma da Previdência

Nair Costa Muls *
É sempre importante, aliás, fundamental, saber escutar e ouvir os outros. Sobretudo quando esses outros têm pensamentos e posicionamentos diferentes dos nossos. Às vezes, essa escuta pode nos trazer alguma luz e possibilitar um aprimoramento de nossas visões do mundo, ou mesmo, quem sabe, fortalecer nossas posições. No que diz respeito à reforma da Previdência, essa escuta é essencial. Pois nela está implícita a Seguridade Social, questão de civilidade e de humanidade, portanto. De justiça social.
Nesse sentido, seria bom ouvirmos dois posicionamentos recém-divulgados, que partem de entidades idôneas e insuspeitas. O primeiro, do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), que congrega igrejas cristãs (católicas, metodistas, evangélicas e anglicanas) e da Coordenadoria Ecumênica de Serviços (Cese) que questionaram o projeto da reforma da Previdência em mensagem encaminhada ao Congresso Nacional. O segundo, um documento do Cofecon – Confederação Federal de Economistas, divulgado em fins de março.
O primeiro acentua, fundamentalmente, a contradição entre os termos da reforma e o evangelho de Cristo, na medida em que maltrata o trabalhador e deixa intocados os privilégios das classes mais abastadas. Chama a atenção para a tremenda injustiça de algumas das mudanças propostas, como, por exemplo, a dificuldade do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), e um patamar que não permite a sobrevivência do aposentado; a exclusão do salário mínimo como ponto de partida para o nível da aposentadoria; o aumento do tempo de contribuição para o trabalhador rural.
Por outro lado, ressalta a urgência de se realizar a Auditoria da Dívida Pública, já que a CPI da Previdência mostrou não haver o propalado déficit. A capitalização e a privatização da seguridade constituem também dois outros problemas sérios, segundo o documento do Conic/Cese: o trabalhador não pode arcar sozinho com o ônus de sua aposentadoria, pois seu trabalho beneficiou a todos: empregadores, sociedade e Estado, assim como o nível de consumo propiciado pelo nível de sua aposentadoria também beneficia a todos, sobretudo, os setores produtivos e o de serviços.
Considera ainda essencial a discussão da questão da Previdência por toda a sociedade ─ que será afetada na sua totalidade ─ para que se possa decidir quais as mudanças são realmente necessárias, de forma a assegurar justiça e equidade… Segundo o documento em questão, não cabe aos grupos econômicos definirem sobre o futuro de um direito fundamental a todos.
O documento do Cofecon – Conselho Federal de Economia, na avaliação do projeto de lei da reforma da Previdência, embora num prisma acadêmico, vai na mesma linha. Também para eles, o principal objetivo da Previdência é promover a justiça social, e isso ela não o faz e não se pode apoiar mudanças que provoquem retrações nos fluxos de transferências governamentais para estratos de menores rendas, mesmo com a promessa de que isto viabilizará maior ritmo de crescimento; sobretudo, se baseada em hipóteses como a chamada “contração fiscal expansionista”, hoje desacreditada pela grande maioria dos macroeconomistas dos meios acadêmicos, inclusive internacionais. Também repudiam a desconstitucionalização da Previdência Social, que transfere para as leis complementares, mais fáceis de instituir e alterar, regras fundamentais do que deve ser função inalienável do Estado.
Entre outros pontos importantes assinalados pelo documento em questão: Necessidade de uma adequada reforma tributária; Inaceitável o uso de montante esperado de recursos economizados como base para especificação e negociação da reforma. A Previdência Social precisa ser sustentável e compatível com o crescimento econômico inclusivo do País, mas os ajustes podem e devem ter efeitos graduais ao longo do tempo. Não existem riscos iminentes de dificuldades do setor publico que não possam ser minimizados com a retomada mais robusta da atividade econômica e com a implementação de uma reforma tributária justa.
Injustificáveis os privilégios para algumas castas do serviço público com integralidade e paridade sem qualquer consistência com os princípios atuariais, sem se apoiar em contribuições ao longo da vida laboral, suficiente para pagar o valor de suas aposentadorias.
Preservação da participação do governo, dos empregadores e dosempregados, e de alguns tributos (Cofins e CSLL) no financiamento da Previdência, assegurados pela Constituição. Os efeitos do crescente tempo de sobrevida da população sobre os gastos previdenciários, não precisam ser compensados de forma imediata, pois os resultados do orçamento da Seguridade Social não têm apresentado desequilíbrios.
O que se pode concluir desses dois olhares, diferentes mas convergentes, é que urge não só a organização e atualização permanente dos sistemas de Seguridade e Previdência, tendo em vista o aumento da longevidade e o dever de cumprir as funções para as quais foram criadas; como uma discussão mais ampla sobre o assunto, envolvendo toda a sociedade, já que os direitos envolvidos na Seguridade e na Previdência são financiados pelo resultado do trabalho social de todos ─ empregadores e empregados e Estado ─ que produz a riqueza econômica de um país e constituem direito de toda a sociedade.
- Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMG-Fafich
Ouça a rádio de Minas