Retórica e realidade

Cesar Vanucci*
“Os políticos costumam se indispor, por vezes, com a realidade” (Antônio Luís da Costa, educador)
O governo diz, o noticiário nosso de cada dia desdiz. A confusão é geral, diria Machado de Assis. Encabulada, a opinião pública acompanha o desconcertante embate entre a retórica palaciana e a realidade cotidiana.
O governo proclama, solene e triunfante, que a corrupção já era, acabou… A Operação “Lava Jato”, merecidamente criticada por extrapolações cometidas na linha dos procedimentos judiciais, mas com insofismáveis efeitos positivos, também já era, sob a ótica oficial, pela “óbvia razão” de não mais existir corrupção nestas felizardas plagas…
O governo não faz menção explícita a isso, todavia, deixa subentendido que o alardeado feito não teria sido fruto, exclusivo, do empenho solitário de uma pessoa. E, sim, resultado de uma poderosa conjugação de vontades. O que remete, naturalmente, ao reconhecimento de que houve “apoio inestimável”, para as medidas de erradicação do mal, por parte da ativa falange que garante suporte parlamentar às ações do Executivo. Ou seja, do operoso Centrão, onde atuam alguns próceres de influente e galharda presença na cena política. Avessos, sabidamente, todos eles, conforme asseguram, às abomináveis práticas do chamado “toma lá dá cá”, que tantos danos infligiu ao País no período anterior ao da eliminação da corrupção…
Entre esses próceres figura o ilustre senador de Roraima, Chico Rodrigues, que, indoutrodia, se viu surpreendido, num lance de distração, quando cuidava de acondicionar, em “cofre improvisado” nas chamadas partes pudendas, numerário adquirido em transação negocial na área da saúde pública.
Classificando de bazófia a proclamação governamental, o jornalismo investigativo, agentes dos órgãos judiciais e da segurança pública acusam, na contradita, todos os dias, através de depoimentos e imagens bastante precisos, que a malsinada corrupção não acabou coisíssima alguma. Continua solta na praça dos infortúnios coletivos, germinando com viço impetuoso de tiririca…
Noutra vertente do aceso embate mencionado, o governo declara, enfaticamente, que país algum do mundo está sabendo lidar, de forma tão positiva quanto nós, com o flagelo do coronavírus. A afirmação colide com os dados oficiais e do consórcio dos veículos de comunicação. Tais dados atestam algo muitíssimo diferente, do conhecimento amplo e sofrido até mesmo dos aborígenes das tribos de distanciados ermos amazônicos, a serem ainda contatados pelos sertanistas da Funai.
Nosso País permanece, há meses, na inglória disputa, com os EUA e Índia, por posição no pódio no tocante à incidência de casos fatais e de contaminação pela calamidade sanitária que atormenta a humanidade.
Tem mais. De outra parte, o governo ainda se permite jactar da política ambientalista que promove. Assinala que, em parte alguma do planeta, a candente questão é tratada com a competência e seriedade observadas no Brasil. “Truco!” – Bradam, resolutos, imprensa e órgãos ambientalistas, dentro e fora do País. A discordância se assenta no fogaréu dos verdes amazônico, pantaneiro, do Cerrado e Mata Atlântica. Os sinais inquietantes do descontrole ambiental e climático derivam de atos predatórios produzidos, não por índios, nem pelos povos da floresta, mas pelos manjados inimigos de sempre da Natureza – banda podre do agronegócio, grileiros, carvoeiros e mineradores.
Replicando os argumentos do ministério que estimula o “estouro da boiada”, dardejam informações sobre os pesados prejuízos que as atitudes e decisões equivocadas, em matéria de política ambiental, causam ao país nas negociações de interesse econômico com a comunidade internacional.
Pelo ponto de vista governamental, não existe, também, fome neste País continental dotado de potencial de riqueza inigualável. A assertiva, outra vez mais, esbarra em evidências clamorosas apontadas pela FAO e pelo próprio IBGE. Este último órgão, ainda recentemente, chamou atenção para a existência de mais de dez milhões de patrícios nossos vivendo em extrema penúria, em inocultáveis condições de insegurança alimentar, o que longe de constituir apenas problema que possa ser enfrentado, pela comunidade, com mutirões assistencialistas, representa uma verdadeira tragédia social, a reclamar mobilização de recursos quase equiparável aos de um esforço de guerra.
Tudo isso posto, não há como deixar de repelir certas manifestações, difundidas intensamente, sobretudo nas redes sociais, por militantes políticos de inclinação fundamentalista, simpáticos ao governo, atribuindo aos veículos de comunicação social, preferencialmente em relação a outras instituições igualmente criticadas, a responsabilidade pelos dramáticos problemas que se enfileiram na vida nacional e que dão margem às confrontações de ideias e alegações comentadas ao longo destas considerações.
Com certeira convicção, a culpa pelo que vem pintando no pedaço não cabe ao jornalismo, que se revela, no cômputo geral, consciente da missão que lhe toca de oferecer ao público uma narrativa realística dos acontecimentos.
*Jornalista cantonius1.yahoo.com.br
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