Saneamento quae sera tamen

Patrícia Boson*
O Brasil deve aos brasileiros serviços de saneamento básico minimamente compatíveis com o século XXI. Chega a assustar ter como parâmetro o fato de que jogamos, todos os dias, 5.700 piscinas olímpicas de esgoto doméstico em nossos cursos de água. Estamos falando de 14,25 bilhões de litros, nem sempre transportados através de um sistema de esgoto, às vezes a céu aberto, entre caminhos de pessoas, por espaços em que crianças brincam. Nossos índices, para um país que já se colocou no 6º lugar no ranking das maiores economias do mundo (2011), são, eu diria, criminosos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a falta de saneamento mata cerca de 11 mil pessoas por ano no Brasil (2022).
Sem entrar no mérito de uma discussão, embasada ou ideológica, sobre a abertura para o mercado da realização desses serviços, com o advento da Lei 14.026/2020, fato é: durante as muitas décadas em que foram monopolizados por empresas estatais – empresas estaduais e autarquias municipais – essas, com raríssimas exceções, não foram capazes de atingir parâmetros dignos. As causas, podem até gerar teses, bandeiras e plataformas político-partidárias, mas não importam para quem morre e sofre as consequências desse desempenho sofrível, muito menos para nossa biota aquática. Mudar esse cenário do saneamento e estimular a universalização dos serviços, tentar um novo modelo, era preciso. Que bom que o Congresso Nacional entendeu isso.
Abre-se assim a temporada de diversos processos licitatórios de relevância, sendo que os modelos de licitação postos para concessão de serviços de saneamento são, tradicionalmente, técnica e preço ou outorga e tarifa (incluindo a menor tarifa) ou apenas outorga.
Para o grande pensador Voltaire, “um homem deve ser julgado mais pelas suas perguntas do que por suas respostas”. Para Peter Drucker, considerado o pai da administração moderna, “o trabalho mais importante e mais difícil não é encontrar a resposta correta, mas fazer a pergunta certa”. Com essas referências, ouso afirmar que a escolha de qual modelo de licitação adotar para concessão de serviços de saneamento é a pergunta correta, ou o trabalho mais importante a ser feito, para se obter a resposta sobre qual empresa será selecionada para uma tarefa “kubitschekiana”: transformar décadas de atraso em poucos anos de bons resultados.
Iniciei minha função de engenharia em um centro de pesquisa tecnológica. A então Fundação Centro Tecnológico do Estado de Minas Gerais, Cetec, o que me faria de pronto a opinar para a escolha do modelo “melhor técnica”. Certo para mim que inovação tecnológica deve ser estimulada e aplicada, sempre. Entretanto, voltando a Voltaire, e mais recentemente a Drucker, sobre fazer a pergunta correta, verifico que não é tão óbvio. Deixando claro aqui, que não estamos falando das exigências de comprovação de qualificação técnica, atestados, normalmente ratificados pelo Conselho de Classe através da Certidão de Acervo Técnico, que comprovam a capacidade técnica para o exercício das funções inerentes aos serviços de saneamento e de obrigatória apresentação, qualquer que seja o modelo.
Isso posto, verifico, fazendo uma analogia para o bom entendimento, que a seleção de uma prestadora de serviços pela técnica não tem sentido no atacado, no grosso. Apenas faz sentido se no varejo, ou seja, se apontada, no processo de licitação, a necessidade de resposta para um problema bem específico e bem caracterizado, no particular. Isso porque, como é sabido, não há qualquer complexidade tecnológica, seja de cunho intelectual ou exclusivo, nos sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Tem-se ainda que as inovações existentes ou em desenvolvimento não são de domínio restrito, tornando impossível a comprovação de fator diferencial em um processo de licitação, caso, como foi dito, não estejam atreladas a um atendimento peculiar. As inovações são ainda, em sua maioria, ferramentas que beneficiam o próprio prestador de serviço, que, portanto, irão, se capacitados, sempre buscar, pois representarão melhor resultado com menor custo, beneficiando também o consumidor, pois podendo representar menor tarifa.
O cenário é: saneamento quae sera tamen. Portanto, a capacidade técnica, exigência de todos os processos, atrelada a qualquer modelo de licitação que tenha ênfase na capacidade econômico-financeira da candidata a prestar os serviços, até para que tenham condições para estimular e aplicar as melhores técnicas, me parecem estar mais apropriadas para o momento atual.
*Coordenadora da Comissão Técnica de Recursos Hídricos e Saneamento da SME
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