Uma tragédia nacional: o preço da desigualdade e da exclusão social

Nair Costa Muls*
Diante dos estragos trazidos pela pandemia do Covid-19, respeitando-se o isolamento social como única maneira de evitar o alastramento do contágio, bem resguardado em nossas casas e tendo condições de garantir as nossas necessidades básicas, fica-se pensando nos moradores de rua e naqueles que habitam as aglomerações periféricas e bairros pobres.
Nas favelas sem água potável, sem esgoto, sem condições mínimas de higiene, sem trabalho. Se o coronavírus chegar aí, vai ser um número enorme de infectados ─ sem que tenhamos as condições hospitalares adequadas ─ e um trágico número de mortes, lá e cá, ou seja, entre os ricos e os pobres.
Como bem lembrou o dr. Dráuzio Varela em uma recente entrevista, o Brasil vai pagar caro a desigualdade e a exclusão social de grande parte de sua população, que sempre marcou a nossa sociedade: 35 milhões de brasileiros sem acesso a água potável, muitas vezes amontoados em um só cômodo; 13,5 milhões vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, com menos de R$ 145,00 mensais… verdadeiro escândalo, com o qual a maior parte dos brasileiros se acostumou… e dela se aproveita.
Sem condições mínimas de isolamento e de cuidados necessários, o número de mortes, segundo Dráuzio Varela, vai ser uma verdadeira tragédia para todos, ricos e pobres, sem falar do grande e duradouro impacto na economia.
Na sua luta contra a pandemia, Dráuzio Varela e mais sete técnicos que fazem parte do grupo recém-criado “Todos pela Saúde”, têm entre as suas funções a aplicação da doação de 1 bilhão de reais feita pelo Itaú Unibanco ao combate do coronavírus. As medidas estabelecidas pelo grupo, cuja execução está a cargo do dr. Mauricio Ceschin, ex-diretor presidente da Agência Nacional de Saúde, são sumamente necessárias, como se pode constatar: proteção aos profissionais de saúde (que já começaram a morrer); a obrigatoriedade do uso de máscaras para todos, inclusive crianças, assim como a manutenção de um preço baixo e a criação de estoque regulador, com a ajuda das secretarias estaduais; o levantamento imediato dos problemas dos hospitais e a criação de um gabinete de crise nas secretariais estaduais. Assim como a recuperação e o fortalecimento do SUS, quase desmantelado nos últimos anos.
Diante da tragédia anunciada, com um número de mortes avassalador, pagando-se o preço da exclusão social que marca a sociedade brasileira, essas medidas, embora necessárias e urgentes, não são suficientes.
O País assiste e vive, ao mesmo tempo, outra tragédia: aquela protagonizada e desencadeada pelo presidente: primeiro, considerando essa pandemia como uma “gripezinha” e a reação a ela como “histeria”; circulando nas periferias de Brasília como se nada houvesse, conclamando o povo a circular também; segundo, com a sua presença na manifestação em frente ao Quartel General do Exército, pedindo a intervenção militar, o AI-5 e o fechamento do Congresso e do STF: contra a democracia, contra o Estado de direito, portanto.
Depois, trocando o ministro da Saúde e colocando no seu lugar uma pessoa sem conhecimento efetivo da saúde, muito menos do SUS, expert que sempre foi em gestão de empresas (só MBAs na área de gestão, apenas dois artigos científicos e nada de doutorado…).
E a última coletiva, com a presença de vários ministros, entre eles o da Saúde (sempre cauteloso e vazio, querendo tirar o coronavírus da pauta… já que existem várias outras doenças a grassar entre os brasileiros), sob o comando do general Ramos (o que é bastante significativo), sem a presença do presidente. Comandando a pauta e o tom da reunião, o general Ramos, entre outros ditos, autoritariamente reclamou da imprensa, dela exigindo mais otimismo e manchetes mais leves. Ficou clara a preocupação do governo em reordenar as preocupações dos brasileiros. E, o mais grave, sem nenhuma medida séria para se enfrentar a doença e com a insistência na suspensão do isolamento social, que prejudica enormemente a economia.
Enquanto isso, o Congresso, o STF e o próprio Exército se mantêm em cima do muro; este último tentando apaziguar os ânimos e relativizar as estultices e loucuras do presidente.
Por outro lado, quem vai pagar a conta? O Estado de direito, ameaçado. O governo, uma confusão. As lideranças progressistas estão inertes. O Congresso não se entende. Os bancos e as grandes corporações de um modo geral não aceitam ver diminuídos os seus lucros. O aumento de impostos sobre o capital é assunto proibido, sobretudo nesse contexto.
Enquanto isso as pequenas e médias empresas e os trabalhadores, quase todos parados, se veem numa “sinuca de bico”. Os grandes saem às ruas em seus carros últimos modelos, exigindo a volta ao trabalho. Dos trabalhadores. Por quê? porque suas máquinas, suas fábricas, seus escritórios estão parados. Sem o trabalhador, nada se produz.
É preciso aproveitar a quarentena não só para fazer uma limpeza geral em nossas gavetas e armários, escutar música, ver filmes, fazer ginástica, trabalhar em home office, mas para fazer uma limpeza geral em nossos valores: cuidar da saúde sim, mas cuidar do País também.
Transformar a economia, ativar a cidadania, se informar, discutir, estudar, saber exigir as mudanças necessárias para que essa desigualdade social, essa exclusão desumana, que faz parte da estrutura social brasileira desde os tempos da colônia, assentada na escravidão, seja finalmente entendida e corrigida. Infelizmente, vamos pagar caro por ela.
* Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMG/Fafich
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