Minas mira protagonismo na economia circular e avança na reciclagem veicular
A economia circular, vista como eixo estratégico para a competitividade e a sustentabilidade industrial, ainda enfrenta obstáculos significativos no Brasil. Embora o conceito tenha ganhado força em setores como o automotivo, especialistas apontam que o País está longe de romper a lógica da economia arterial, baseada em extrair, produzir e descartar, e de capturar plenamente o potencial econômico da circularidade.
Dados globais reforçam a urgência: mais 90% de tudo o que é produzido no mundo não retorna ao ciclo produtivo. Em 2019, o índice global de circularidade era de 9%; hoje está em 6,9%, em razão do crescimento acelerado do consumo. “Estamos produzindo cada vez mais, e a taxa do que reciclamos está ficando proporcionalmente menor. Esse resíduo todo vai parar no meio ambiente”, afirma o professor Daniel Castro, pesquisador e coordenador de um projeto pioneiro de reciclagem veicular no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).
O especialista lembra que a pressão sobre os recursos naturais já ultrapassa limites críticos. “Estamos acabando com os recursos do planeta”. Castro cita que habitação e infraestrutura concentram 42% do consumo global de materiais, seguidas pela alimentação (21%) e pela mobilidade (12%). Ele pondera, porém, que a solução não passa apenas por atacar os maiores consumidores, mas por mudar o modelo econômico. “Investimos 0,2% do PIB (Produto Interno Bruto) em sustentabilidade. Assim, não vamos resolver”, alerta.
Diante dessa necessidade, a transição para modelos produtivos mais sustentáveis, baseada na economia circular, dominou os debates do seminário “Inovação Tecnológica para a Economia Sustentável 2025”. Especialistas, empresários e representantes do governo estadual concordam: Minas Gerais reúne condições para liderar o setor no País, mas ainda precisa superar gargalos históricos na gestão de resíduos, na regulação e na articulação entre empresas.

Circularidade além da reciclagem e o protagonismo do setor automotivo
Para a professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG) Camila Castro, a lentidão brasileira decorre de uma compreensão estreita do tema. “A reciclagem é apenas um ponto. Existem diversas estratégias ao longo da vida útil do produto, como prolongar o uso, remanufaturar, reutilizar e redesenhar. Precisamos de muitos atores pensando nisso desde a produção”, diz.
Ela explica que o desafio central é sistêmico, e mesmo setores avançados, como o automotivo, não conseguem fechar o ciclo de forma isolada. “A economia circular não funciona sozinha. É necessária sinergia para definir quem recicla, quem usa e quem processa. Uma empresa sozinha, ou mesmo várias sozinhas, não consegue sustentar o modelo”, completa.
A indústria, porém, já sente pressões concretas. O setor automotivo, por sua vez, é apontado como o mais promissor para ganhos de escala.
O Programa Mover estimula investimentos em novas rotas tecnológicas e aumenta as exigências de descarbonização da frota automotiva brasileira, incluindo carros de passeio, ônibus e caminhões. Com ele, as empresas terão de apresentar inventários de emissões, o que intensifica a necessidade de rastrear materiais, emissões e impactos ao longo da cadeia.

Sancionado em 2024, além de tratar da pauta do desenvolvimento sustentável, o programa traz obrigações já exigidas das empresas no exterior, como a descarbonização e a adoção de novas tecnologias. O programa prevê, por exemplo, limites mínimos de reciclagem na fabricação dos veículos e a criação do IPI Verde. Esse sistema tributário beneficia quem polui menos, com menor imposto. No total, serão R$ 19,3 bilhões em créditos financeiros entre 2024 e 2028. Eles podem ser usados pelas empresas para abatimento de impostos federais, em contrapartida a investimentos realizados em P&D e em novos projetos de produção.
O passivo ambiental e a crise dos desmontes
O diretor de Desenvolvimento Logístico da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Sede), Lucas Augusto Norberto e Silva, destaca que o País deve produzir 2,5 milhões de veículos em 2024, enquanto 2 milhões chegam ao fim da vida útil todos os anos. Ele ressalta, no entanto, que a desmontagem ainda carrega estigmas. Dos 2,8 mil estabelecimentos classificados como desmontes no País, apenas 500 são credenciados. Segundo ele, a baixa profissionalização limita ganhos econômicos, tecnológicos e ambientais.
“Se não tratarmos isso adequadamente, teremos um passivo ambiental monstruoso. Uma empresa sozinha não consegue processar esse volume. E, no Brasil, temos o agravante de que sempre tratamos a desmontagem como algo irregular. Regularizar e estruturar a cadeia pode gerar milhares de empregos”, sugere Silva.
Ele reforça que, além de reduzir emissões e apoiar metas de descarbonização das montadoras, pressionadas por compromissos internacionais, a circularidade tende a destravar valor econômico significativo. O diretor exemplifica que o valor agregado da reciclagem é ainda maior no caso dos veículos elétricos, especialmente com a entrada de créditos de carbono e energia. E adianta: o governo estadual está finalizando o decreto que irá regulamentar a cadeia até meados do próximo ano.
A criação de um Conselho Estadual de Economia Circular está entre as propostas para acelerar decisões e alinhar esforços de governo, empresas, academia e sociedade civil. Inclusive, já existe um grupo de trabalho com várias áreas do próprio governo, como as Secretarias de Meio Ambiente e da Fazenda, a Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep), o Cefet, a Secretaria Municipal de Educação (SME), a Stellantis e a Associação de Desmontes Veiculares e Peças Recicladas em Minas Gerais (Adlex-MG).
Rede nacional de reciclagem de veículos inicia operação com cinco desmontes
O seminário “Inovação Tecnológica para a Economia Sustentável 2025” também marcou o anúncio da primeira rede nacional de reciclagem de veículos, iniciativa coordenada pelo professor Daniel Castro, que há 15 anos desenvolve pesquisas no Cefet-MG com apoio do governo do Japão.
Segundo Castro, a rede já opera com cinco desmontes integrados, responsáveis por mais de 300 veículos reciclados. Todos são monitorados por um selo ambiental criado por ele, que certifica o impacto evitado e a rastreabilidade dos materiais.
A mudança regulatória impulsionará a demanda. O programa federal Mover, em fase final de estruturação, deve obrigar montadoras a encaminhar cerca de 20% dos veículos produzidos para reciclagem. “Esses veículos precisarão ser reciclados em algum lugar. A rede pretende absorver essa demanda e prestar o serviço por meio de empresas que trabalham com a reciclagem de materiais, como aço, plástico, vidro e borracha”, detalha.
Por fim, o professor calcula que o mercado brasileiro de reciclagem veicular deve movimentar R$ 20 bilhões ao ano, podendo crescer com a expansão dos veículos elétricos e com a monetização de créditos de carbono e energia. “É um movimento gigantesco para a economia”, conclui.
Escute, a seguir, uma análise da reportagem gerada com o apoio da inteligência artificial (IA)
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