Diante da escuridão – um miniconto para a quarentena
Rogério Faria Tavares*
Acordou ainda refém do pesadelo recorrente, a cena colada à retina: de novo, parecia confinado a uma espécie de caverna, de onde não era possível sair, os músculos retesados, a expressão aflita, o pescoço projetado para frente, os passos curtos, cautelosos, sem saber que rumo tomar diante da escuridão.
Queria a luz do sol e o ar livre, a circulação pela rua, a rotina do consultório, as caminhadas pela praça, os encontros casuais com os amigos, os abraços, o riso fácil, a descontração.
Aliviado por se ver a salvo em seu quarto, notou que suava. Apreensivo, encostou a mão na testa para sentir a temperatura. Julgou-se febril. Lembrou-se de que o termômetro estava na primeira gaveta, disponível, mas preferiu adiar a providência, como se fosse possível evitar a verdade.
A mulher dormia um sono profundo. Consultou o celular no criado mudo: seis da matina. Zelando para que seus movimentos não a despertassem, aprumou a coluna e calçou os chinelos postos ao pé da cama. Lutando contra maus pensamentos, avançou em direção à porta, apoiando-se nos móveis, as dores pelo corpo.
Será que? … Não, não, de jeito nenhum, isso seria o cúmulo da injustiça. Quatro ou cinco idas ao supermercado não poderiam condená-lo… Ainda cambaleando, dirigiu-se ao banheiro mais longe, no fim do corredor, para que os barulhos não incomodassem a família.
Jogou o pijama no cesto e esticou o braço em direção à torneira. Seria possível lavar-se do medo com água e sabão? Aguentou a ducha por algum tempo. Enrolando-se na toalha, reuniu as forças restantes e aproveitou para aparar a barba. Encarou um homem entediado, quase arrastado para o deserto da depressão, de que era urgente livrar-se. ‘Preciso criar dois filhos. Preciso criar dois filhos’.
Com a caneca de café na mão, deixou-se cair na poltrona predileta, herdada do pai. Em orações, pediu a ele, falecido há décadas, que lhe emprestasse um pouco do vigor que nunca lhe havia faltado, em sua longa existência. Um silêncio absoluto dominou o ambiente. Procurando manter a calma, contemplou o espaço ao redor, seu abrigo, em tempo quase integral, pelos últimos quatro meses.
Os livros da estante imensa permaneciam lá, solenes, insensíveis aos seus temores. Os quadros nas paredes impunham sua beleza abstrata, deslocada no tempo e no espaço. Os porta-retratos remetiam a momentos felizes, tão distantes quanto a vida lá fora, agora inacessível. Abrindo a janela, tentou capturar pelo menos um pouco do oxigênio exterior.
Algo pareceu roçar-lhe os pulmões. A tosse emergiu, incontrolável, acendendo em seu peito o pavio do pânico. Ainda engasgado, avistou um vulto a observá-lo do prédio em frente, mal escondido pelas cortinas. Intrigado, deteve-se, imóvel, numa tentativa de estabelecer alguma conexão com o misterioso vizinho. ‘O que você quer de mim?’, disse para si mesmo, angustiado, duas ou três vezes, como se pudesse ser ouvido, a cabeça baixa.
Por alguma razão insondável, ergueu o tronco, com a coragem necessária para encarar quem parecia espioná-lo. Expondo a sua face, o vulto aproximou-se do parapeito segurando um grande cartaz, em que se podia ler, mesmo à distância: ‘Não pense. Pule. Agora!’
Piscando repetidamente, apurou a visão para entender melhor o escrito: ‘Não pire. Pense. Agora!’
*Jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras
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