Variedades

IDEIAS | O tempo finito da “besta”

IDEIAS | O tempo finito da “besta”

Zé da Pipa tem diante de si a tradução de uma sentença de Anaximandro, feita por Nietzsche. Resolve, então, telefonar para Joana, sua afilhada. Ele sabia que ela buscava elementos para escrever um livro sobre os descalabros cometidos pela pessoa que presidia o seu país à época da pandemia, que matara quase um milhão de pessoas.

— Minha querida, já não nos falamos há algum tempo. Imagino que você esteja bem.

— Sim, estou bem. E penso que você segue igual.

— As más notícias não esperam pelo vento para se espalharem. Houvesse coisas erradas conosco, já o teríamos sabido.

O conteúdo continua após o "Você pode gostar".


— Peço desculpas, sou eu quem lhe deve um telefonema. Mas a pesquisa para o livro que escrevo tem me dado muito trabalho.

— Bem, é exatamente este o motivo dessa minha chamada. Encontrei algo que talvez lhe interesse. O texto é pequeno. Vou lê-lo para você. Ainda que o viés do seu livro não seja filosófico, quem sabe, você não aproveita alguma coisa desse pequeno trecho?

Ele pega o livro, e, em seguida, começa a leitura: “Onde as coisas se originam, ali também forçosamente hão de perecer, porque purgarão e serão julgadas pela sua injustiça, de acordo com a ordem do tempo”.

— Hum, talvez pudesse, ainda que digressivamente, aproveitar essa versão nietszschiana, afinal, no que diz respeito aos fatos que descrevo no livro, ela não poderia ter sido mais correta.

— Há muitas outras traduções, mas todas elas comtemplam a problemática do ser como ente temporal.

Zé da Pipa explica, então, que a sentença de Anaximandro, remete, na antiga Grécia, para a preocupação com a origem e o final do ser, para a temporalidade e para a imperfeição. Para o filósofo, o ser concreto sustenta-se na injustiça. Por isso, a razão e a natureza do ser, e a ordem jurídica e moral, unem-se em um ponto comum: a busca da ratificação em um ser atemporal e perfeito que os legalize e os torne justos.

— Mas, padrinho, se buscar a ratificação em um referente atemporal já é praticamente impossível nos dias atuais, imagina no Brasil daquela época.

 — Pense no reverso da atemporalidade, aí quem sabe?

— Bem, o meu tema centra-se na desastrada condução da pandemia feita pelo presidente da época.

— Você ainda era muito pequena, teve sorte de não ter sido acometida, como tantas crianças o foram, pela Covid. A pergunta que fazíamos, naquele momento, era de como um indivíduo tão nocivo como aquele conseguia sobreviver tanto tempo no governo.

— Pois é, mesmo com tantos pedidos de impedimento, a figura parecia ter a proteção do inferno.

— Sim, não tenho a menor dúvida que fazia parte do séquito infernal, mas por sorte não se reelegeu. E é aqui entra o tal do reverso da atemporalidade que lhe disse há pouco. Mas lembre-se, o problema não se resumiu só naquela pandemia, você bem o sabe. Imagino que também falará das outras nefastas ações adotadas pelo governo daquela época, incluindo as suas consequências.

 — Está nos meus planos. Ainda que tivessem surgido algum tempo depois, de uma certa forma, estavam relacionadas ao desmatamento da floresta amazônica.

 — Agora o digressionista serei eu. Isso me faz lembrar o pequeno desmatamento que Noé fez na construção do barco, para salvar uns tantos do tsunami que acabaria por levar os pecadores da época diretamente para o inferno. Se a voz dele pudesse viajar pelo futuro e chegar até nós, só ouviríamos lamentações. De nada lhe valeu o sacrifício de juntar tanta madeira para o tal barco. Sem falar ainda no tremendo esforço que deve ter feito para conter todos aqueles parentes e animais, ansiosos para furar a fila que se fez para entrarem no barco que os salvaria da grande enchente. Pois é, repito, tamanho trabalho para nada. Os tais pecadores que ele, sem dó nem piedade, afogou voltaram com toda força e trouxeram consigo um repertório de sacanagens da melhor qualidade; opa, corrigindo: da pior qualidade. Hoje estão por aí, encarnados e infiltrados na política, nas igrejas, nos exércitos, nas polícias, enfim, estão em todos os lugares. São os pecadores sêniores.

— Diante de número tão grande de pecadores, Sr. Lúcifer deve ter aumentado a sua morada.

 — Eu diria que pôs mais lenha na fornalha. Afinal, precisaria de muito fogo para toda essa gente.

— Concordo, a lista era grande. A começar pelo presidente e todos os que apoiaram; incluindo aí os militares, os políticos, os médicos e os eleitores que, apesar de saberem o mal que ele fazia, ainda o continuaram apoiando.

 — Bem, minha afilhada, voltando a Anaximandro, eu analisaria a questão da seguinte forma, obviamente pontuando sobre aquele presidente. O ser atemporal perfeito não existe. Mas, a“besta” que nos governava jamais teria seus perversos atos legalizados e tornado justos.

 — Sim, pelo menos, podemos dizer que as suas ações foram interrompidas, e a tal “besta” foi julgada e condenada por suas ações aqui na terra.

 — Bem, se por um lado não temos a atemporalidade do ser justo, por outro lado tivemos a temporalidade atuando sobre as ações de um determinado mau caráter.

Rádio Itatiaia

Ouça a rádio de Minas