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IDEIAS | Olhar desenvolvido

IDEIAS | Olhar desenvolvido
Crédito: Adobe Stock

Há dias encontrei-me com secretária de uma galeria de arte, cujo trabalho é lidar com pinturas, desenhos, esculturas, lito e xilogravuras há dez anos. Perguntei-lhe se neste período ela havia aprendido a diferençar a qualidade das obras entregues na galeria e nos leilões patrocinados pelo seu chefe. “Aprendi muito com ele, mas demora demais pra gente desenvolver o próprio olhar e conhecer o que é arte e o que é apenas pintura”. Corretíssima sua assertiva. Nascemos com potencial para desenvolver todos os sentidos. Fazemos isso com o paladar que, de um delicioso pirulito na infância, terminamos por apreciar um bom vinho na vida adulta. Fazemos isso também com a audição, que começa nas músicas que o leitor gosta mais e, mais tarde, entende por que Mahler, Bach e Beethoven são imortais.

Com o olhar não é diferente. O leitor neófito em arte não deve imaginar que vendo um ou dois quadros periodicamente é capaz de definir o que é obra-prima ou não. A tarefa é em longo prazo, mas é prazeroso como poucas coisas na vida. Depois de algum tempo exercitando o olhar, o mesmo colecionador sentirá a beleza de algumas peças em detrimento de outras que não são tão belas. Durante esse exercício, o crescente interesse intelectual pela arte é fundamental para que se enraíze o desejo. Ler ou folhear livros de arte, frequentar leilões e galerias de arte, museus e exposições são indicações para um caminho apaixonante.

 Nesta nova estrada o leitor notará que aumentou sua sensibilidade e se apaixonou pela arte e até aprendeu a não viver sem ela. A sensibilidade pessoal vai deixar rastros, registros, traços na memória que, com o passar dos anos, fará o interessado se lembrar de alguns quadros que ficaram gravados na lembrança afetiva e, ao se recordar deles, verá também a chance que perdeu em não adquiri-los. “Aquele era um bom quadro que deixei passar”.

 O leitor que inicia sua coleção deve pautar por aceitar conselhos de pessoa mais experiente, aquela que depois de frequentar durante anos museus, galerias e leilões, já tem o olhar desenvolvido e se dispõe a mediar as compras do amigo. É possível que em determinados momentos o conselheiro dê opiniões que o novato não concorde. Não se deixe levar pela sua inexperiência em contraponto à perícia dele. Aceite o conselho, sobretudo se vem sem interesse comercial. Com frequência, há compradores em leilão a encher a sacola de peças de valor artístico baixo apenas para cobrir paredes. Compre um quadro por ano, mas “o quadro”. Arte no Brasil ainda é muito barata e com o crescimento do país, isso não durará muito. Novos colecionadores de bom gosto e ricos vão se aproveitar da ocasião.

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Registre-se ainda e sempre que em toda boa arte há um mistério indecifrável. O Canal Arte 1 do dia 12.7.22 exibiu um programa a mostrar vários segredos contidos em quadros de Almeida Junior, em especial “O Descanso da Modelo”, uma obra prima ímpar no qual parece haver um diálogo com o artista e a mulher que, ao piano, descansa depois de horas posando. De que falaram? Quem era ela, que aparece apenas de costas nuas e de meio perfil? Que relacionamento afetivo havia entre os dois para que surgisse a obra prima?

 Foi apresentado ainda outro deslumbrante óleo sobre tela, no qual a modelo, esboçada nua na tela do cavalete dentro do quadro, mas a tentar se esconder e se vestir apressadamente, cheia de recato após alguém bater na porta do atelier. Ela está vestida e quase pronta para se retirar. O quadro também está cheio de mistérios ainda mais se considerarmos a biografia do pintor com Maria Laura do Amaral Gurgel. A modelo é Maria Laura? Quem seria “O Inoportuno”, título do quadro, surgido no meio da sessão? Por que ela se preocupa em não aparecer para a visita? Que perigo corria os dois adultos surpreendidos para existir tanto medo e angustia na tela? É um momento de adultério? O quadro é premonitório? Almeida Junior teve um caso amoroso com Laura antes de se casar com o primo do pintor, paixão que perdurou depois da casada e por anos até que o marido descobriu o affaire por intermédio de cartas amorosas escritas pelo artista. Aquele se separou da mulher dois dias depois, esperou pelo pintor onde ele estava hospedado e o esfaqueou em uma lavagem de sangue como era costume na época. Almeida Junior morreu com 49 anos deixando um legado imortal.

 Não é mandatório conhecer a biografia do artista para saber sobre os eventuais mistérios de seus quadros, mas é algo que ajuda para compreender alguns conteúdos. É o olhar desenvolvido que descobrirá primeiro, que há um mistério. Pintura que diz tudo ao espectador é tão ruim quando um texto que não deixa nada para o leitor concluir. Em seguida há o interesse, a curiosidade e um chamamento internos que levarão o novo colecionador a tentar desvendar algum segredo. É inútil achar que o encontrará e o resolverá, mas é um novo e intrigante fascínio a cada mirada. Essa não é a única, mas é uma das razões que faz o colecionador apaixonado nunca fechar sua pinacoteca. Há sempre novos mistérios em óleo sobre tela.

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