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IDEIAS | Para os que olham, mas não veem

IDEIAS | Para os que olham, mas não veem

Dentre as dezenas de coisas importantes que havia, uma se destacava: a de que ele prometera às Marias, aos Manoéis, aos Franciscos e a todos, que o país não se tornaria igual a um outro país do mesmo continente, e que se livrariam do bicho papão comunista. E ele também havia dito que, juntos, construiriam uma nova nação. Que jamais voltariam a ser o país da corrupção e da quebra dos bons costumes. Sucesso total, pensava ele. Afinal, quem, dentre os seus eleitores, gostaria de ter o que chamava de “o retrocesso dos governos anteriores”? A viagem ao país de faz de conta prometida por ele era um bilhete só de ida; não admitia a possibilidade de volta para o estado de coisas que ele hipocritamente condenava. ―  Venham, entrem no ônibus da moralidade e dos bons costumes, falava ele.

 E foi assim que ela, acreditando naquelas promessas, entrou na condução que os levaria ao tal país, o país do faz de conta. ― Nada de voltar ao passado, disse em voz alta para os seus próprios botões. Logo depois, começou a desfiar outras razões para justificar a admiração pelo seu candidato. Ter ao meu lado no avião, uma empregada doméstica? Não, jamais, isso é um privilégio de minha classe social. Já não bastava ter que dar direitos trabalhistas para elas? Ver o meu filho dividir um assento na universidade pública com o filho de um operário e ainda por cima, negro? Que tormento! Afinal, gastei os tubos em escolas particulares para lhe garantir o acesso à universidade pública. Igualdade de gênero? Nem pensar. Se eu me resignei a ser uma mulher submissa e não vejo nada de mais nisso, porque cargas d’água alterar uma regra que atravessou os séculos? Nós, mulheres, nascemos para obedecer aos nossos maridos, e ponto final. Não se discute. Terra para indígena? Que absurdo. É preciso acabar com as demarcações de terras desse povo e, de uma vez por todas, trazê-los à civilização. Desmatamento? Porque o combater? Tanta terra que pode servir de pasto para o gado. O gado, cuja carne vai saciar o meu desejo na hora do almoço, na hora do jantar e, sobretudo, garantir a subsistência dos churrascos que o meu maridão faz no de fim de semana, à beira do lago. Respeitar as opções sexuais de cada um? Viado, lésbica? Nem me pronuncie esses nomes, causam-me asco. Seria ir contra a natureza humana, contra as leis de Deus.

E era assim que deveria ser, pensava ela e grande parte dos que, com uma expressiva votação, o elegeram. Se o eleito ainda não tinha a maioria dos deputados para governar, não teria dificuldades para fazer a tinta de sua caneta imprimir, sobre os cheques palacianos, polpudas quantias. Conquistaria, assim, de alguns, o tão desejado apoio. Aos seus eleitores, não lhes importava que o seu candidato fosse um analfabeto funcional, e que as suas palavras incapazes de, juntas, formarem uma sentença, tivessem que fazer um esforço hercúleo para saltarem de sua boca. O fundo sem poço de significados que é a polissemia nunca se tornara tão raso com a insignificância do que dizia. Não importava também a execrável postura que adotara em toda a sua vida: homofóbico, misógino, racista, autoritário, com fortes tendências golpistas.

Não, nada disso importava para eles. Não foram capazes de enxergar as insuspeitas pistas que o então candidato, em sua deplorável existência, deixara. Afinal, dentre os que o elegeram havia alguns que comungavam ipsis litteris com as suas macabras ideias. Entre esses eleitores, havia uns que, até mesmo, consentiam em abrir mão do pouco de decência que ainda lhes restava, para justificar o incondicional apoio dado à figura que elegeram. Outros, carentes de quaisquer virtudes, viram nele a representação de seus caráteres. Mas, entretanto, havia os que se arrependeram, uns tantos depois de perderem familiares para a famigerada Covid, cujo combate por parte do governo, além de nunca ter merecido a atenção necessária, ainda foi desestimulado; outros tantos por deixarem a alienação e a ingenuidade de lado e terem se dado conta do quão nefasta era a presença do escolhido.

Mas, agora, o apoio que o consagrou nas eleições, começou a fazer água. Acusações de prevaricação, referências nas Nações Unidas de que havia extermínio de índios, sem contar os constantes protestos mundiais contra a devastação da floresta amazônica, podiam levar o tal apoio a um naufrágio.

Além de cega para essas e outras circunstâncias, ela ainda se negava a aceitar como verdadeiro o fato de que a universidade pública, para a qual ela queria que seu filho fosse, havia sofrido um grande desmonte com o corte de verbas. Tampouco se revoltava com o escandaloso privilégio dado aos militares e a outras castas, quando da apresentação da reforma da Previdência.

Com receio de que ele sequer passe para o segundo turno nas eleições, ela inicia uma campanha para lhe garantir um segundo mandato. Concordando com a estapafúrdia ideia de que as eleições, se realizadas através do voto digital, serão fraudadas, ela vai a um restaurante e, tresloucadamente, grita, quando vê um dos políticos responsáveis pela decisão que aprovará ou desaprovará essa proposta: ― Voto impresso! Voto impresso! Temos que apoiar a iniciativa do nosso governante, diz ela, não se dando contada raivosa e sulfúrica baba que começara a escorrer por um dos cantos de sua boca.

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