“Mitos” forjados em mentiras

Ao iniciar a pesquisa para o livro que escrevia sobre a pandemia que afetara o seu país há 25 anos, Joana, literalmente, se afundara em um mar de perplexidades. Uma das maiores era em relação à incompetência e subserviência de um descerebrado e mentiroso ministro da época.
À medida que avançava na leitura dos arquivos, o seu fôlego se tornava curto e era devorado por uma grande indignação. Como entender a conduta do dirigente maior da nação, que, além de criminosamente atrasar a compra de vacinas, tinha feito campanha para medicamentos que agravavam as condições dos pacientes?
Veio-lhe, então, à memória, a morte prematura de seu pai. Pai, que sequer pudera conhecer. Ele, como muitas centenas de milhares de outros, fora vítima da pandemia. O resgate daquela lembrança lhe trouxe uma tristeza que, beirando a melancolia, a fez interromper a pesquisa que realizava. O pensamento sobre a morte do pai, por um momento, a abandonou. Passou, a partir dali, a viver uma estranha experiência: a experiência do nada, com a sensação de ter a sua alma mergulhada em um poço sem fundo. Foi, então, que para preencher aquele incomodo vazio, começou a ler a carta que o seu pai, ao pressentir que morreria, lhe deixara.
Querida Joana,
O conteúdo continua após o "Você pode gostar".
Você ainda não é capaz de identificar esse conjunto de sinais, algum dia chamado por alguém de letras, que, juntas, nos permitem formar as palavras. Essas palavras, muito em breve, substituirão o seu choro; o choro utilizado por você para demonstrar algum desconforto, ou para reclamar de alguma coisa. Quando começar a compreendê-las, verá que, na boca de alguns, podem provocar pequenas desavenças ou devastações impensáveis. Contudo, essas mesmas palavras, também poderão ser usadas para outras coisas: seja para expressarem, sob forma de poesia, a beleza da vida, seja para declararem o carinho, a afeição ou amor por alguém.
Nessa idade, os seus lindos olhos lhe trazem apenas imagens que estão a pouco menos de quarenta centímetros de distância. Lamentavelmente, não poderei fazer parte desse seu ainda limitado campo visual. Ah, minha pequena Joana, como eu gostaria de vê-la me olhando, explorando com os seus piscantes olhos cada parte do meu rosto.
Você também não poderá sentir o toque de minhas mãos acariciando a sua face ou lhe fazendo cafunés para trazer seu sono mais rapidamente.
Tampouco poderá ouvir as canções de ninar que eu gostaria de cantar para você; cantigas que ouvia da minha mãe quando ela queria aplacar o meu choro na hora de dormir.
Um dia, quando você crescer e começar a perceber as coisas, tenho certeza de que, como eu, também lutará contra as ações desses mitos forjados em suas mais altas mentiras, ignorâncias e maldades.
Termino por aqui, porque o meu lado piegas já foi longe demais, e o meu pensamento deseja reter o que existe de bom para nos fazer lutar. Espero que você sempre mantenha consigo a esperança presente das boas coisas futuras.
Terminou de ler a carta e pôs-se a refletir sobre uma passagem: “lutar contra os mitos forjados em mentiras”. O tema merecia a sua atenção. Afinal, as mentiras eram, na época daquela pandemia, um lugar comum em quase todos os setores do governo.
Mas ela sabia também que nem todas as culpas assumidas causavam embaraço: o reconhecimento público do erro, se acompanhado de justo arrependimento e providências circunstanciais, sempre foi uma mostra de coragem e dignidade. A atitude de humildade, longe de fragilizar a imagem do culpado no meio social, acabava por humanizar as relações entre ele e a sua comunidade. No entanto, pelo visto, dignidade e coragem eram produtos em falta no caráter das pessoas que estavam, à época, em cargos executivos.
O problema se agravava com a perpetuação da mentira e sua utilização como ato rotineiro. Mentir se tornava tão natural, que o mentiroso acabava por acreditar que a sua mentira era a mais pura das verdades e não se dava conta dessa transformação. Joana batizou o fato de “verdade mentirosa”. E foram essas tais “verdades mentirosas”, perpetradas pelo presidente e seus asseclas, que, além de terem provocado um morticínio na população, tinham sido responsáveis, entre outras coisas, pela devastação da mais importante floresta mundial.
As tais mentiras haviam enganado, também, alguns tolos eleitores, que, ao elegerem o tal presidente, sem levar em conta a sua deplorável vida pregressa, contribuíram para o surgimento de um populismo fanático, manejado por um tiranete de plantão. Sob seu desgoverno, a democracia tinha sido conspurcada e violadas as mais elementares regras de humanidade. Joana concluiu, tristemente, que o ideal de então, submetido à fatalidade modificável daquele contexto, acabara por adaptar-se a uma ditatorial e demagógica democracia.
Ela interrompeu as suas reflexões, levantou-se, foi à estante e retirou de lá a República. Era chegada a hora de reler Platão.
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