Mostra de Tiradentes deixa legado para reflexão

A complexidade de um cenário de pandemia somado à ausência de políticas públicas para o audiovisual não tem sido fácil fazer, pensar e refletir arte no Brasil nos últimos tempos. Os participantes da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes levaram algumas dessas questões às mesas de debate e rodas de conversa, relacionando seus trabalhos ao estado calamitoso das coisas. A ideia de que não se faz arte apartada da vida repetiu-se em vários encontros, reforçada pela noção de que isso não significa ser refém de demandas sociológicas, e sim absorver as contradições e devolvê-las em forma de expressão criativa.
A montadora Cristina Amaral apontou que o cinema ao qual ela se dispõe a fazer não tem espaço para acomodação, por ser “absolutamente colado com o viver”. Na concepção dela, a busca da relação entre viver e criar encaminha o processo de trabalho e impregna quem vai se envolvendo. Num cenário complicado como o recente, Cristina exortou os realizadores a sobreviverem em todos os sentidos, na insistência de seguirem inventando formas e estéticas que possam reverberar no futuro.
A escritora Ana Maria Gonçalves expôs ideia parecida ao descrever sua própria forma de criar: “Acredito no processo artístico como algo em que estamos o tempo todo se questionando a partir do que se faz e como se faz. Não quero trabalhar respostas com a arte que eu faço, e sim perguntas. Faço isso através de enredos e personagens que incomodam na construção ética do mundo que me rodeia e em como isso pode ser transferido para a vida e adquirir significado social”.
O cineasta Adirley Queirós acrescentou a ideia de arte como batalha e defendeu que conflitos sejam positivos ao criar. “Brigar não é necessariamente romper, e sim fazer um ato reflexivo, encontrar os seus aliados, fazer a revolução ali dentro. O primeiro ato da criação é um ato de revolta, e isso move a engrenagem criativa, explicou.
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Em nove dias, a Mostra de Tiradentes apresentou, em 114 filmes, a diversidade expressiva da produção brasileira, dando aos espectadores uma ideia concreta do cinema feito agora no país, entre as limitações da economia e da pandemia e a riqueza de representações, vozes, identificações e provocações. O corpo, em especial, foi reforçado em várias falas como elemento essencial da relação múltipla entre câmera, olhar do cineasta, olhar do ator/atriz e olhar do espectador – é, de muitas formas, a materialidade epidérmica que dá forma ao filme a partir de sua ocupação num espaço determinado.
Rumos políticos – Mesmo que esse espaço seja uma caixa-preta, como em “Agora”. Diante do complexo cenário eleitoral de 2018 e a ascensão da extrema direita em âmbito federal, a diretora Déa Ferraz se pegou intrigada com a força das imagens em circulação naquele momento e de que forma elas influíam nos rumos políticos e nas escolhas dos eleitores. Desses estímulos, ela elaborou o dispositivo retratado em “Agora”.
O performer Macca Ramos, diretor de “Negro em Mim”, afirmou que, depois da doença, um corpo recuperado é um corpo mais forte – e ele quer acreditar que essa alegoria sirva também ao contexto geral brasileiro. “Espero que a gente entre num momento de convalescença e recuperação da sociedade, de reflexão sobre nosso papel de ser humano nesse mundo. A recuperação é o momento de maior criatividade”, ressaltou.
Pensar o cinema como ação política, segundo Rubens Rewald, foi o estopim do filme “#eagoraoque”, que tem o filósofo Vladimir Safatle como condutor. “Quem se agregou ao projeto tinha em mente que não seria só uma aventura artística, mas também a necessidade de expressão política de todos os envolvidos. Não queríamos mostrar um ideário, e sim abrir discussões”, disse Rewald.
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