O cadáver do século XXI

Faltavam três anos para que a década de 60 batesse em retirada quando, em uma de suas crônicas, Nelson Rodrigues escreveu que ao lado de um atropelado, inexplicavelmente, sempre surgia uma vela cuja chama era resistente às intempéries do tempo.
Ventos, chuvas e até mesmo um furacão não seriam capazes de apagar a anônima solidariedade dada ao defunto estirado no asfalto. Eram tempos em que os solidários, desconhecidos ou não, exerciam, em sua plenitude, os seus temperamentos caridosos, nos subúrbios cariocas, e nas, ainda existentes, zonas rurais (atualmente engolidas por uma selvagem urbanização).
Desde então, os governos no Brasil, eleitos ou não, passaram por muitas primaveras. Umas tantas longas, como a ditadura imposta pelos militares, cuja marca registrada foi a redução das liberdades individuais e a tortura aos que lhe faziam oposição; outras tantas, curtas, em que os mandatos dos presidentes eleitos foram reduzidos, por conta de dois impedimentos: o primeiro,em 1992, justo, pelas fraudes financeiras e corrupções; o outro, em 2016, injusto, provocado pelas ambições de um vice-presidente e de uma deslavada escroqueria política. Houve também aquelas primaveras em que os mandatários puderam acertar em seus primeiros governos, mas tiveram esses acertos logo suplantados pelos erros cometidos em suas reeleições.
O espírito amistoso das pessoas e a vontade de prestar auxílio, de um modo geral, atravessaram os períodos de todos esses governos, malgrado as ações desastradas de um ou de outro. Mas havia algumas exceções. Lembro-me que, no início da década de 70, socorri, na praia de Ipanema, um garoto, filho de uma atriz de cinema.
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O rapaz tivera um dos olhos perfurados por uma prancha de surf. Mas nem mesmo o sangue, que jorrava aos borbotões do vazado olho do acidentado, foi capaz de sensibilizar os que lá estavam. E lá fui eu sozinho para o hospital Miguel Couto com a assustada vítima, cuja palidez faria o branco parecer a mais escura das cores.
Hoje, as pranchas de surf já não atacam os banhistas com tanta frequência, já que estes, por medo ou prudência, não se aventuram a mergulhos em águas mais profundas. O perigo atualmente vem dos ancilostomídeos, vermes encontrados nas fezes dos cachorros que passeiam livremente nas areias das praias, e que podem surfar sobre intestinos, causando às vezes mais danos que uma pontiaguda prancha de surf.
Deixo de lado essa ligeira divagação e retorno ao tema que me move – a solidariedade -, já agora em pleno século 21, quando as primaveras que marcaram o último governo potencializaram ainda mais na sociedade atual a distopia e o egocentrismo.
No ano passado, eu estava no Brasil, mais precisamente em Ipanema, bairro de classe média alta do Rio de Janeiro, quando, ao passar por uma padaria, presenciei uma cena insólita. Um homem, que fazia das ruas a sua morada, entrou na padaria, caiu, pediu ajuda, cuspiu sangue e recebeu o convite do universo. Morreu bem no meio da padaria, sem o seu cão, único e fiel companheiro. Nada a fazer, exceto cobrir-lhe o corpo e esperar a sua remoção. Mas não foram o morto e nem as circunstâncias de sua morte os protagonistas naquela padaria.
Não senhor… o que me chamou a atenção foi ver que alguns clientes continuaram a tomar o clássico café com leite e pão com manteiga na chapa, com o pobre defunto quase que colado aos pés de suas mesas. Para essas pessoas, o cadáver do pobre coitado não passava de um grande embrulho, deixado por engano naquele local, ou, recorrendo uma vez mais ao Nelson Rodrigues, era apenas uma “barata seca que se empurra com o lado do pé”.
Lá se foi o tempo em que um cadáver juntava multidões de curiosos e que merecia, em sua solidão eterna, a companhia da chama de uma vela. A morte nunca foi tão banalizada como agora. A atual hierarquia de valores, eleita por muitos e referendada pelo poder dominante, parece ser a responsável pelo afloramento de tal insensibilidade. Kant nunca esteve tão certo quando, em “Metafísica dos Costumes”, dizia: “as leis regem a natureza, mas as nossas vontades são regidas pelos nossos princípios”.
Mas quero ainda ressaltar um paradoxo comportamental nesse episódio, já que essas pessoas olham as mortes dos outros como uma sensibilidade mínima e consideram as suas próprias mortes como uma sensibilidade máxima, temendo-as e fazendo de tudo para postergá-las.
Nada justifica melhor essa ideia do que os recentes episódios envolvendo muitas pessoas que furaram, sem nenhum constrangimento, a fila para tomarem vacinas, tema que merece ser estendido em uma outra vez.
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