Variedades

O livro fala com o leitor

O livro fala com o leitor
Crédito: Freepik

Carlos Perktold*

Por causa da internet, perco prestígio no formato gráfico a todo o momento. Várias pessoas acham que estou no fim de carreira depois de tantos séculos prestando serviços, criando riquezas, distribuindo ideias e cultura e as modificando com o tempo. Até revoluções e guerras atribuem a mim. Alguns de nós viramos clássicos e permaneceremos ainda por séculos.

Vários de meus antepassados foram preservados, têm mais de quinhentos anos e passaram a se chamar incunábulos, palavra esquisita para designar quem é sábio há mais de cinco séculos. Apesar disso, corro risco de desaparecer. Não somente eu, mas os editores, meus criadores industriais e os meus depositários chamados livraria e biblioteca.

Com meu desprestígio, os primeiros só aceitam quem vende muito, interessando-se pouco por jovens escritores, cujo risco comercial é grande. A segunda, a livraria, começou a levantar a bandeira branca, recorrendo ao Judiciário para não abrir falência, tão distantes estão ficando os leitores.

A terceira ainda é frequentada com assiduidade por interessados, buscando informações nos milhares de exemplares ali expostos. Mas hoje tenho que competir com o tal do Dr. Google, um intelectual no qual todos confiam e que ainda por cima dá tudo de graça. Basta um clique.

“De graça” aqui não tem sentido financeiro. No passado, o esforço da pesquisa, esse pagamento interno, uma espécie de pedágio intelectual criava algo que fazia o pesquisador guardar na memória a matéria pesquisada e transformar o conjunto de seu aprendizado em cultura. “De graça”, ainda, por que sem esforço não há instrução, exatamente como diz o inglês: no pain, no gain, expressão demonstrativa de que sem empenho pessoal nada é duradouro.

A internet não é a única responsável pelas estradas cheias de abismos que ando caminhando. A cópia xerox e suas similares também ajudaram a construí-los e, desculpem-me os professores, eles também contribuíram para a criação de minha irmã bastarda, a xeroteca.

Nascida com o DNA do furto autoral compartilhado com a preguiça intelectual, ela cresce sempre que os professores informam aos alunos qual o capítulo será exigido na prova mensal e que ele está disponível “na copiadora da escola” para reprodução. Por que não me recomendam por inteiro?

O resultado é que, ao final do curso, os estudantes têm literalmente uma montanha de cópias de capítulos e nenhum de nós inteiro. Qualquer curso, além de ser espaço e ambiente para debate de ideias e buscas de soluções, deveria ser os meses ou anos nos quais a estudantada organizaria uma biblioteca e a veria crescer ao longo da vida profissional, facilitando as pesquisas do segmento de cada um.

Entendam que não sou contrário à cópia por inteiro ou de partes de alguns dos nós, desde que sejamos raros. Já imaginaram ter cópia em cores de um incunábulo, ilustrado por iluminuras de um desses artistas que ficaram incógnitos, mas que deixaram acervo artístico de dar inveja a qualquer pintor modernista? Vi uma cópia dessas sendo vendida por uma fábula.

No meio de tanta gente me desprezando, há um amigo que me oxigena, circula pelo meu corpo e me deixa feliz: o leitor. Eu e ele somos um par romântico, daquela fase antiga do “eu não vivo sem você”.

Gosto de viajar com ele, vê-lo me abrindo para leitura ou, quando é mais estudioso, grifando as frases mais importantes de qualquer página por acharem-nas fundamentais no caso de eu ser honrado com a releitura, mesmo que rápida. Não há um só de mim ou biblioteca que aguente a ausência desse meu admirador, que anda tão escasso que deveria entrar na lista dos animais em extinção do Ibama.

Quando os autores escrevem, estão à procura desse leitor e esperam um comentário depois da leitura, uma resenha, um elogio ou uma crítica ferrenha. Quando necessário, não lamento que esses mesmos leitores sejam desrespeitosos comigo. Não sou intocável, nem fui criado para ficar guardado nas estantes e ser virgem de leitura durante a minha existência.

Conheci um leitor que andava de ônibus lendo e jogando pela janela as páginas já lidas. É desse desrespeito que falo. Sei que alguns de nós somos bonitos, mas não podemos apenas servir como objeto de decoração, como se fôssemos um móvel ou um quadro na parede. Tenho irmãos que ajudam na decoração da sala, mas ficariam lindos se exibissem também o quanto foram lidos.

O espaço aqui é pequeno e não pretendo esgotar esse pedido de socorro e nem esse triste episódio que ando vivendo. Dizem que é fruto da nossa crise. Mentira. O risco que corro é universal e é por isso que chego ao problema financeiro que pesa sobre mim. Alguns não me levam para casa por que dizem que sou caro. Não é verdade.

As coisas têm um custo e o do livro é alto. Não contem por aí, mas a menor parte dele é paga aos autores. Como veem, até chegar como sou a trajetória é longa e preciso demais desses últimos. Depois de pronto, sou como o poeta: “preciso de todos”. E quem não precisa de mim?

*Psicanalista, advogado e escritor

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