O sonho recorrente

ROGÉRIO FARIA TAVARES*
Mauro era muito apegado ao carro. Chegava a ser ciumento. Tratava-o como a um brinquedo exclusivo, no qual ninguém mais podia tocar. Era capaz de passar tardes inteiras dedicado a limpá-lo, caprichoso, carinhoso. Por isso, quando estendeu a chave do carro à mulher, pedindo que ela dirigisse, Elmira tomou um susto. Mas logo se recompôs. Se por um segundo se perdeu em devaneios, rapidamente voltou a si, empertigando a coluna, compenetrada. Seus olhos brilharam. Com os dentinhos amarelados pelo vício do tabaco, mordeu os lábios inferiores, como quem espera que sangrem. O tique que há décadas cismava em atazaná-la apareceu novamente e ela deitou a cabeça em direção ao ombro esquerdo, buscando ouvir um estalo. Era inacreditável, mas a cena do marido entregando a ela a chave de seu tesouro mais precioso fazia parte de seu sonho recorrente. Aquele, o mais perigoso. Aquele, o pior, o que lhe provocava insônia e desespero. Sorriu nervosa, com medo de que o marido notasse. Por dentro, deu uma gargalhada.
A verdade é que, desde o dia anterior, o delegado não estava se sentindo muito bem. Depois de relutar muito, admitiu, para si mesmo, que precisava descansar. ‘Vamos para o sítio’, sentenciou. ‘Mas hoje é quarta-feira’, lembrou a esposa. ‘Não tem problema. Eu preciso ir’.
Ansiosa, Elmira fez a bagagem de ambos e embarcaram. Depois de ajustar a distância do banco em relação ao painel e de alterar levemente a posição dos retrovisores, deu partida. Mesmo com a cabeça completamente tomada pelas cenas terríveis do sonho recorrente, agora perto de encenar-se na realidade, permitiu-se sentir o prazer de conduzir. Sua satisfação era ainda maior por conta da duração da rota, que seria de cerca de duas horas, tempo necessário para chegar até o ponto evocado em sua memória. Para Mauro, iriam ambos até o sítio do casal, na cidade em que costumavam passar alguns fins de semana e feriados, nos últimos tempos apenas os dois, já maduros, os filhos criados e casados, morando fora. Pobre Mauro.
Ao lado de Elmira, em poucos minutos, cumprindo rigorosamente o sonho-profecia, Mauro já cochilava, abrindo os olhos uma vez ou outra, como no momento de uma freada mais brusca. Em meia hora, no entanto, dormia e roncava sem pudor, em sono profundo, de que dificilmente despertaria sozinho ou antes que cumprissem o percurso. Perturbada pelos sons – cada vez mais altos – emitidos pelo marido, Elmira tentou acordá-lo, repetindo seu nome com a voz firme e brava. Sem o sucesso esperado, experimentou ligar o rádio. Não adiantou. Aumentou o volume. Não foi o suficiente. Suspirando fundo, a mulher aceitou o fato de que a vida iria, realmente, realizar o seu delírio, como num caminho sem volta. A providência seguinte foi esperar o trecho certo, a curva mais fechada da estrada, quando, das suas margens estreitas, se podia avistar, lá embaixo, no final da ribanceira, o rio largo e sinuoso, apontando para longe.
Assim que chegou ao lugar apontado pela memória, parou o carro no meio da pista, corajosa. Retirando o cinto de segurança atravessado no peito de Mauro, falou, pela última vez, o seu nome, o rosto bem próximo ao do marido, sem obter resposta. Abandonou o carro rapidamente, indo esconder-se atrás de algumas folhagens. Viu tudo, mas não ficou para ajudar. Sem pestanejar, fixou os olhos no final da ribanceira, o rio largo e sinuoso, apontando para longe.
*Jornalista. Presidente da Academia Mineira de Letras
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