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Uma obsessão, uma favela e uma barbárie

Uma obsessão, uma favela e uma barbárie
Crédito: Reuters/Sergio Moraes

As minhas nostalgias da infância mandam-me, a todo momento, mensagens para que as contemple em minhas crônicas. Respondo-lhes que as ações do presidente de um certo país são uma fonte inesgotável de notícias, as quais merecem, por seus escabrosos conteúdos, serem discutidas e combatidas por todos aqueles que tiverem oportunidade de se manifestarem na imprensa.

Digo-lhes, portanto, que aguardem, pois, diante das atuais circunstâncias, não posso perder a oportunidade de marcar posição sobre os discursos do desgoverno federal, na coluna semanal que escrevo para o jornal. Afinal, essas circunstâncias funestas fazem uma pressão, ainda maior do que minhas nostalgias pessoais, para que eu me manifeste em relação a um certo cidadão que, apesar de detestar a imprensa, torce para que as suas mentiras escapem das mídias sociais e que sejam aí veiculadas. Suas mentiras são tão deslavadas, que não respeitam a inteligência nem mesmo das cabeças menos aquinhoadas.

Ah, estivessem vivos Barthes, Julia Kristeva e Michel Foucault se horrorizariam e sugeririam, talvez, uma análise semiótica, psicanalítica e filosófica desses tais discursos. Ou quem sabe seja necessária apenas uma análise psiquiátrica? Deixo para que cada um julgue por si mesmo o que diriam eles.

Retomo a minha obsessão que me persegue desde 2019. A princípio, sem que me desse conta, ela foi se incorporando ao meu modus fasciendi de cronista, com um tal poder que passei a me sentir impedido de abordar outros temas. Uma amiga, que incluo, ao lado de outras amigas e amigos, no grupo, classificado por Umberto Eco, de leitores especiais – e que tem acompanhado e feito comentários sobres minhas crônicas – foi quem me chamou atenção para o fato, sugerindo que eu também desse oportunidade para outros assuntos.

Antes de passar ao tema que levantarei nesta crônica, tentarei explicar, ancorado em Walter Benjamin, o significado de “leitor especial”. Segundo ele, os autores têm dentro de si, guardado em uma cripta, um corpo embalsamado e rico em texto e imagens. Os escritores seriam aqueles que trariam esse corpo textual à superfície, e seriam capazes de quebrar com o uso cotidiano que geralmente se dá às palavras. Volto aos leitores especiais. Eles possuem um bisturi especial que disseca esse corpo textual, e com as tintas dos seus pensares, de suas vivências, de suas experiências e de suas leituras, reescrevem o que escrevemos. Nessas horas, eles podem, com muita facilidade, ser mais do que sonham, e conseguem decodificar os signos, às vezes ocultos, que os autores deixam em seus escritos.

Atenderei, então, em parte à sugestão de minha amiga. Em parte, porque mudarei o foco de minhas críticas, tirando-as, nesse momento, do desgoverno central, levando-as para um desgoverno estadual, cúmplice de uma barbárie perpetrada por uma desastrada ação policial em uma favela. O resultado foram 28 mortos e um passageiro ferido em um trem de metrô que passava pela região. Embora o governador em questão tenha afirmado que a tal ação policial foi fruto de dez meses de um trabalho de inteligência, por incrível coincidência, a invasão na referida favela deu-se imediatamente após à morte de um policial naquele local.

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Ao se observar estas e outras ações anteriores em favelas, pode-se inferir que uma guerra se encontra em curso, há muito tempo, no estado. Isso me faz lembrar uma inscrição que Emmanuel Kant (1724-1804) observou na Holanda: “Só no cemitério se encontra a paz perpétua”. O fato o levou a escrever a obra “Paz Perpétua”. Para ele, o direito de guerra, como último recurso, pode ser justo, quando um Estado se encontra ameaçado; mas a guerra não pode ser punitiva, não pode ser de domínio e não pode ser de extermínio. O vencedor somente poderia obrigar o inimigo a pagar pelos gastos da guerra.

 Ainda na tentativa de melhor entender o problema, busco, na obra da escritora judia Hannah Arendt (1906-1975) – “Origens do Totalitarismo”, informações para agregar algumas ponderações a mais sobre o assunto. Considero, ao guardar as devidas proporções com a obra dela, que as favelas da região têm as suas liberdades seriamente restringidas, seja pelo poder do tráfico local, seja pelo poder sem restrições, exercido nas incursões policiais.

A obra de Arendt, apesar de ser mais histórica do que filosófica, reconhece que se perdeu fé na razão e na explicação dos fatos. Na minha opinião, o problema é exatamente esse, a perda de fé na razão.

 Para finalizar, junto algumas perguntas ao que falei sobre os dois últimos filósofos. Um trabalho de dez meses calcado sobre estudos realizados com inteligência não deveria levar em conta a morte de pessoas, moradoras de favelas, completamente alheias à criminalidade? O Estado, ao invés de matar, não deveria prender e julgar, condenando os que cometeram de fato os crimes? Como explicar que as incursões com mortes nas favelas subam imediatamente após a morte de um policial, segundo relato da imprensa, 1100%? Por acaso, o governador, que tratou a ação policial como um sucesso, sabe que deve existir uma fronteira entre Estado e barbárie?

Com relação aos moradores de favela, a persistir o pensar atual do governo, volto a lembrar a inscrição que o Kant viu na Holanda: “A paz perpétua, só mesmo no cemitério”.

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