VIVER EM VOZ ALTA | Ainda sobre Otto Lara Resende

Conforme prometido na coluna da semana passada, escrevo hoje sobre alguns dos belos livros deixados por Otto Lara Resende, quando celebramos seu centenário de nascimento. Lançado pela editora “A noite”, do Rio, “O lado humano” marcou a estreia de Otto em livro, em 1952, reunindo nove narrativas breves, e apresentando aos leitores um ‘universo em formação’, onde as primeiras manifestações do que voltaria, com mais força, cinco anos depois, já aparecem com clareza, como se percebe, especialmente, em “A pedrada”. Aqui, os protagonistas – dois garotos e uma garota – lançam pedras contra um homem a quem chamam repetidamente, aos gritos, de “veado! veado!”. A líder do trio, curiosamente, é uma menina conhecida por ‘Juca’, o que causa estranhamento em uma velha que observa a cena de uma janela próxima: “Ué, você tem nome de homem?”, ao que ela responde: “Apelido”, antes de atirar o que lhe restou nas mãos na direção de um poste.
Em “Das Dores”, Otto narra a aproximação amorosa entre Lourenço Marques, um homem casado, e a suburbana Sônia (que, na verdade, é Das Dores), charmosa balconista de uma loja de roupas do centro. Lírico e suave, o conto flagra uma delicada e fugaz história de amor em meio à agitação e aos ruídos da metrópole. Em “O morto insuspeito”, Josias é o cidadão que se vê atarantado e perdido entre guichês de repartições públicas depois de ler, no jornal, o convite para o enterro de alguém com o mesmo nome que o seu.
Segundo Augusto Massi, os nove contos do livro “remetem ao Rio de Janeiro, início da década de 1950, sob uma atmosfera conservadora e burocrática. Homens e mulheres se contemplam no espelhinho da infelicidade, hesitam entre pequenos poderes e imensos pudores, entre recato público e vida dupla. Otto se insinua pelas frestas ficcionais da classe média, atritando ainda mais as relações entre sociabilidade e sexualidade, vizinho de “A vida como ela é” (1951), de Nelson Rodrigues, e “Novelas nada exemplares” (1959), de Dalton Trevisan.
Em 1957, apareceu “Boca do Inferno”, um conjunto de sete contos sobre o universo infantil, suas sombras e perversões, todos ambientados no interior. A repercussão da obra foi intensa. Em pouco tempo, recebeu mais de trinta resenhas, a maioria desfavorável, como as assinadas por José Roberto Teixeira Leite, Assis Brasil, Roberto Simões, Temístocles Linhares, Ruy Santos e Reynaldo Jardim. Rubem Braga não conseguiu esconder seu desconforto: “A sucessão desses sete contos é angustiante, o leitor não espera nunca nada de bom – e afinal quase sempre acontece o pior. Como em seu livro anterior, “O lado humano”, Otto vê a parte miserável, humilhante, embora escreva essas histórias torpes em uma linguagem limpa e cheia de pudor”. Só Eduardo Portella e Hélio Pellegrino emitiram pareceres receptivos. Paulo Mendes Campos escreveu: “Eis aqui um livro de contos e sem literatura. As sete narrativas reunidas em “Boca do Inferno” são descarnadas, agressivas e deprimentes como argumentos cinematográficos do neorrealismo italiano. Os enredos esquemáticos pouco importam: o ângulo quase de documentário em que se coloca o narrador dessas sete histórias sobre meninos define o livro”.
Publicada originalmente sob o título de “O carneirinho azul”, em 1962 (na coletânea “O retrato na gaveta”), na novela que Otto depois rebatizou como “A testemunha silenciosa” o protagonista é, mais uma vez, uma criança vivendo em uma cidade pequena. Oprimido pela mesquinhez das relações sociais e familiares de sua Lagedo natal, de onde planeja escapar, assim que possível, o menino ainda presencia um crime sobre o qual não pode falar uma palavra, o que o deixa ainda mais angustiado. De “O retrato na gaveta” também fizeram parte contos como “Os amores de Leocádia”, “O gambá”, “Boa noite, vigia”, “Gato gato gato” e “Todos os homens são iguais”.
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