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VIVER EM VOZ ALTA | Desavisados

VIVER EM VOZ ALTA | Desavisados
Crédito: Divulgação

ROGÉRIO FARIA TAVARES*

Aos vinte anos, empolgado por programas de televisão, decidiu que – também ele – seria famoso, importante, digno de ser lembrado (e reverenciado) pelos pósteros, anos ou décadas após a sua morte. Já imaginava a veiculação de uma série sobre sua vida, exibida em várias temporadas, ou até mesmo ruas ou avenidas batizadas em sua homenagem.

Sem entender exatamente porque, desenvolvera uma espécie de fobia ao anonimato, associando-o à irrelevância. Lamentava a sorte de amigos e parentes que certamente passariam pela existência em brancas nuvens, sem deixar nenhuma obra ou legado a ser destacado. ‘Seres supérfluos, que não fazem diferença…’ Nem mesmo seus pais escapavam do severo escrutínio: ‘Funcionários públicos, como milhares de outros. Trabalhadores e honestos, sem dúvida, mas medíocres, sem ambição’.

Precisava, no entanto, escolher o motivo pelo qual gostaria de entrar para o seleto e exigente clube dos humanos inesquecíveis, já que, até àquela altura, era apenas um estudante do terceiro ano de Direito, matriculado em uma faculdade privada, sem grande reputação. E o grave: um aluno mediano, como outro qualquer, desprovido de um talento inegável ou de uma vocação irresistível.

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Cogitou, em primeiro lugar, a política. ‘Se todos sabem até hoje o nome de governantes antigos é porque deve funcionar. Se os governadores e o presidente aparecem na televisão praticamente todo dia, é porque meu raciocínio faz sentido’. Aproximou-se dos colegas que militavam no movimento estudantil. Passou a folhear o jornal do diretório acadêmico.

Chegou até a comparecer a algumas reuniões depois das aulas. Em pouco tempo, percebeu sua inapetência para aquela atividade, segundo ele ‘muito complicada’. Não haveria algo mais simples à sua espera?

Ficou sabendo que escrever livros podia lhe dar pelo menos um pouco da projeção desejada. Ouviu em algum lugar que os membros das academias de letras eram chamados de ‘imortais’. Animado, navegou pela internet buscando dicas de como se tornar um literato de prestígio. Assistiu a quase duas dezenas de vídeos a respeito no youtube.

Quase pensou em inscrever-se em uma tal ‘oficina de escrita criativa’. Um primo lhe disse que, se quisesse se sair bem na profissão, seria indispensável ler. E ler muito. Na volta da faculdade, parou numa livraria por acaso posta em seu caminho. Não sabia por onde começar. Passou por livros assinados por padres, pastores, apresentadoras de televisão, blogueiras e atletas. Ficou confuso. Chegou em casa com quatro volumes, comprados a partir da indicação de uma vendedora solícita e paciente. Intocados, os livros permaneceram sobre sua escrivaninha até o dia em que uma faxineira desavisada resolveu arrumar de verdade o seu quarto. Foram para uma prateleira alta, na sala de visitas, de acordo com as instruções dadas por sua mãe. Lá estão até hoje, ainda plastificados.

Alimentado por uma estranha persistência, seguiu em frente. Já formado, arranhou a guitarra em uma banda de rock. Por poucos meses. De um dia para o outro, resolveu fazer o curso de gastronomia, na esperança de ensinar receitas impressionantes na tevê.

Elogiado pelo professor nas cinco primeiras semanas, tinha certeza de haver encontrado, finalmente, seu caminho. Foi barrado na sexta aula, por uma espinha de peixe definitiva.

Discretos, os pais organizaram um velório restrito aos mais íntimos, os convites feitos por telefone, sem alarde. A cremação foi rápida. As cinzas permaneceram sobre sua escrivaninha até o dia em que uma faxineira desavisada resolveu arrumar de verdade o seu quarto.

*Jornalista, presidente da Academia Mineira de Letras

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