VIVER EM VOZ ALTA | “O mulo”, “Utopia selvagem” e “Migo”, de Darcy Ribeiro

O segundo romance de Darcy Ribeiro, “O mulo”, é de 1981, e conta a história de Philogônio de Castro Maya, o Mulo, morador do sertão de Goiás e narrador do enredo, um homem que fez o que foi preciso para conquistar certo poder de mandar.
Ele relata sua trajetória numa espécie de exame de consciência ao perceber que o fim se aproxima: “Habito esse mundo que não é meu. Não me foi dado. Nele estou arranchado. Nem aluguel pago. Ou pago? Só se for o imposto de viver tossindo, condenado a esperar a morte, e com esse meu medo da passagem para o Outro Mundo. O Indesejado, que Deus inventou e mantém, não sei onde, me esperando”.
Para Jean Pierre Chauvin, professor da USP, “Maíra” (1976) e “O mulo” (1981) ilustram de forma antecipada algumas das principais linhas de pensamento de Darcy Ribeiro sistematizadas em “O povo brasileiro”, livro de 1995. Especialmente os resultados da nossa constituição etnicamente miscigenada e sincrética, do ponto de vista cultural:
“Muito antes de abordar de forma teórica os focos de miscigenação no que chamou de ‘Ilhas-Brasil’, seus primeiros romances privilegiam dois grupos sociais que não foram integrados à sociedade do homem branco. ‘Maíra’ foi arquitetado sob o foco do indígena, cuja identidade se anulava em contato com o homem civilizado. ‘O mulo’, contado do ponto de vista do sertanejo. Ambos os romances enfatizam o problemático contato entre os grupos sociais, pautados pela violência verbal e física”.
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“Utopia Selvagem”, de 1982, retoma o tema do hibridismo cultural, uma das linhas de força de toda a sua reflexão teórica. O livro conta a história de Pitum, negro que se vê obrigado a conviver com as índias amazonas.
Para o professor Marcelo Franz, no complexo das ideias de “Utopia Selvagem”, e de todo o pensamento de Darcy Ribeiro, persiste a compreensão da miscigenação como o fator preponderante na definição do caráter do povo brasileiro a ponto de não se imaginar a possibilidade de haver geração futura em nosso País se os três elementos básicos de nossa constituição, o negro, o branco e o índio, permanecessem isolados, sem se cruzarem.
Já seu último romance, “Migo”, de 1988, é narrado em primeira pessoa por Ageu Rigueira. Nascido no interior de Minas, o personagem se muda para Belo Horizonte a fim de tornar-se um escritor e de afirmar-se como intelectual.
Composto por cento e noventa e três textos curtos, o livro aborda temas variados como a infância, a família, os amigos, a vida de escritor, o sexo e a morte.
Ainda no primeiro fragmento, revela-se um pouco da natureza da narrativa que se oferece ao leitor:
“Escrevo como quem vomita o inconsciente às golfadas, pondo para fora o que há lá dentro, no fundo de mim. Tudo metido em palavras e frases legíveis. Verdadeiras? Por vezes. Mas sem nenhum fanatismo de veracidade, misturando passado e presente como me saiam. Espontaneamente. Quando tomo o comando, me envolvo tanto que me atrapalho todo. Se me enrosco até não me metendo, quanto mais. Só sei mesmo deste meu livro – diário? Romance? Biografia? – é seu nome provável: Migo. Não sei bem por quê. Será talvez para expressar minha identidade mais íntima: a-migo, co-migo. Lembra também inimigo. Que mais? Sei lá! Migo seja, isso me basta. Suspeito também que Migo seja eu. Sou eu”.
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