VIVER EM VOZ ALTA | O paradoxo de 2020
Rogério Faria Tavares*
Por muitos, 2020 pode ser chamado de ‘o ano que não começou’ ou que ‘terminou antes de começar’, pelas razões óbvias, por todos conhecidas. Quantos projetos ficaram pela metade ou foram interrompidos no seu nascedouro? Quantos precisaram ser adiados, geralmente sine die, ou simplesmente cancelados? Quantos encontros deixaram de acontecer? Incontáveis. E parece que essa história vai longe. Não há um horizonte definido para a plena retomada da convivência social. A chamada ‘flexibilização’ ainda está bem distante do que sonhamos. Passar o dia inteiro calculando os metros que nos protegem dos demais e com uma máscara cobrindo metade do rosto não é nada agradável, mas é o que é possível, nas circunstâncias atuais.
O vírus, que chegou com força total e atrevimento desmedido, permanece entre nós, mais ativo que nunca. Embora haja, nos dias que correm, um terrível esforço para minimizar os seus efeitos ou até negar a sua letalidade, a verdade é que ele continua firme e forte em sua agenda destrutiva, zombando dos incrédulos e lançando ao constrangimento e ao ridículo os que – ingênua ou maliciosamente – todavia teimam em desconsiderar ou atenuar os seus poderes. Não, o ‘corona’ não é uma peça de ficção, não é fake news. É real e já matou pelo menos um milhão de pessoas ao redor do planeta. (Devido à subnotificação, os números são, seguramente, bem maiores).
No entanto, apesar de tudo o que fez com o nosso ano, a pandemia acabou por gerar um paradoxo de fascinante configuração: isoladas em casa, impedidas de circular livremente pela cidade e de conviver socialmente, muitas pessoas precisaram lidar, em intensidade multiplicada, com variados aspectos de sua vida e acabaram investindo em outros modos de ser e de relacionar-se, o que terminou por provocar uma impressionante explosão de criatividade e de inovação. Espécie vocacionada para adaptar-se e sobreviver, os seres humanos desbravaram trilhas antes inexploradas em sua existência, inaugurando diferentes possibilidades de produzir e de comunicar-se. Com o suporte das tecnologias digitais e das redes sociais, apresentaram ao mundo surpreendentes jeitos de trabalhar, de reunir-se, de discutir, de debater e de fazer cultura.
Nesse campo, especialmente, a contribuição de 2020 para a música, o teatro e a dança não poderá ser desprezada. Nunca houve tantas apresentações como agora. E melhor: para públicos imensos, dos quatro cantos do globo. No meio literário, também são inúmeras as manifestações. As pessoas estão lendo e escrevendo mais. E publicando. Já são várias as coletâneas de contos e de crônicas organizadas das mais distintas maneiras.
Fiel à missão a ela atribuída pelos seus fundadores, em 1909, a Academia Mineira de Letras não perdeu tempo. Associando-se ao Grupo Autêntica, dirigida pela talentosa Rejane Dias dos Santos, coordenou a edição do volume “Vinte contos sobre a Pandemia de 2020”, no qual os leitores encontrarão textos inéditos de Ivan Ângelo, Frei Betto, Olavo Romano, Luís Giffoni, Jacques Fux, Carlos Herculano Lopes, Francisco de Morais Mendes, Eliana Anastasia Cardoso, Carla Madeira, Cidinha da Silva, Paula Pimenta e Cris Guerra, entre outros. Resposta potente ao medo e à morte, a Literatura segue em frente, com a cabeça erguida, esperançosa…
*Jornalista. Doutor em Literatura. Presidente da Academia Mineira de Letras
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