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VIVER EM VOZ ALTA | O voo rasante do pombo sem asas

VIVER EM VOZ ALTA | O voo rasante do pombo sem asas
Crédito: Divulgação

Mineiro de Três Corações, com graduação e mestrado em história, servidor da UFMG e colunista do site “Digestivo Cultural”, Luís Fernando Amâncio lançou seu primeiro livro em 2014. Vencedor do Prêmio Literacidade, “Contos de Autoajuda para pessoas excessivamente otimistas” contém, em vinte e oito narrativas, as características que o autor preservou e desenvolveu em sua segunda publicação, “O voo rasante do pombo sem asas”, do final de 2020. Nas vinte e uma histórias que formam esse volume, Amâncio é, de novo, um observador arguto e crítico da condição humana, invariavelmente frágil e precária, exposta às situações mais terríveis e, ao mesmo tempo, sempre a um passo da comédia ou do ridículo.

 Assinado pelo próprio Amâncio, o texto que apresenta “O voo…” já dá mostra de seu estilo: irônico, mordaz, e, sobretudo, atento aos mistérios propostos pelo cotidiano mais banal, matéria de onde extrai seu universo ficcional. Qualificados como ‘os filhos indesejados das cidades’ ou ‘os mais carismáticos portadores de parasitas que conhecemos’, os pombos que inspiram o título da obra formam a metáfora escolhida para qualificar seus contos, ‘que passeiam por temas urbanos e pelas tensas relações que sustentam a sociedade’. Na segunda orelha do livro, a escrita é qualificada, ainda, como uma forma de resistência do autor, ‘que prefere criar narrativas de ficção a fazer coisas úteis com seu tempo livre’, para concluir, com fino humor: ‘o tempo se encarregará de dizer ao escritor que ele está errado”.

 Desconfio, no entanto, do contrário: Amâncio não perde suas horas escrevendo. Abri a primeira página de “O voo…” no começo da manhã e fui até o final, sem intervalos, interessado em sua prosa vigorosa e surpreendente, no destino dos personagens imprevisíveis e irremediavelmente presos aos meandros da vida real, com as suas mazelas e seus pequenos encantos, como em “A confissão de Jurandir”, quando uma cena de assalto à mão armada resulta em um momento de inesperada ternura. Nos flagrantes captados pelo contista, um breve instante é capaz de gerar sentidos imprevistos, potentes para abrir novas chaves de leitura. É o que ele faz com grande habilidade em “Cheiro de Bicho”, trama que aborda temas atualíssimos como a desigualdade social brasileira, a violência contra a mulher e a atuação dos milicianos digitais, típica dos dias que correm. “Notas sobre um linchamento” também merece destaque. Em formidável ‘atualização’ de enredos bíblicos, Amâncio dá voz a Zacarias, Apolônio, Eliseu, Bartimeu e Bartolomeu, animados a exterminar quem quer que julguem merecer o seu ódio.

 Os minicontos incluídos no livro são igualmente preciosos. Tomo a liberdade de transcrever aqui, integralmente, um dos mais divertidos, intitulado ‘Doação’: “Estava farto do trabalho, do ambiente da empresa. Precisava de descanso. Então, esperou o fim do expediente para ir até a sala do chefe. ‘Senhor, preciso doar sangue’. O chefe lhe deu as costas, buscando um relatório na estante. ‘Não podemos ficar sem um funcionário. Faça isso no sábado’. Ao se virar, porém, o chefe percebeu que o empregado não falava em doar o próprio sangue”.

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