VIVER EM VOZ ALTA | Prato que se come frio

ROGÉRIO FARIA TAVARES*
Não tinha mais que treze anos, mas as curvas da mulher atraente na qual se transformaria no futuro já se insinuavam sobre seu corpo corado pelo sol, habituado a duas temporadas anuais na praia de predileção dos pais. Já começava, aqui e ali, a ser vista com outros olhos, embora ainda não desse muita atenção a isso. Às vezes nem entendia direito certos comentários que ouvia pelas ruas. Ainda vivia uma existência feliz, ocupada pela convivência despreocupada com as primas e as amigas do colégio. Seria naquela noite, no entanto, a última a bordo do navio em que passava férias com os tios, que se despediria, do pior modo, da menina espontânea e divertida que sempre fora, para ingressar num mundo mais complexo e perigoso.
Só se lembra que dormia profundamente. Acordou quando a porta se abriu e alguém entrou em sua cabine. O vulto se moveu com agilidade. Camila o encarou atônita, sem compreender seu movimento. Custou um segundo a divisar corretamente seus contornos. A figura tinha o olhar aceso por uma espécie de fogo que ela não sabia, naquela época, identificar. A passos largos, aproximou-se da cama da garota, como quem sabe exatamente a que veio.
Sem perder tempo, avançou contra ela cobrindo-lhe o nariz e a boca com um lenço umedecido por substância forte e rápida o bastante para dopar seus sentidos. Num estado intermediário entre o sono e a vigília, Camila sentia as mãos hábeis a tocá-la onde jamais ninguém havia chegado. Depois vieram a boca e o hálito quente. Mesmo sem força, tentou gritar, mas a voz não saía de sua garganta. A segunda aplicação do entorpecente foi o suficiente para apagar a sua consciência.
Sua memória daquela madrugada foi responsável por fazê-la sofrer por muito tempo. Assim que despertou, demorou ainda alguns minutos para recuperar, na lembrança, os últimos acontecimentos. Apavorada, flagrou a flor de sangue desenhada em seu lençol. Aflita, deu um jeito de sumir com a roupa de cama que lhe envergonharia por anos. Aquele rosto, no entanto, fez questão de conservar nítido em sua retina, como quem precisa de um motivo para continuar vivendo.
Por quase duas décadas, optou pelo silêncio, a alternativa mais segura. Sem saber como, talvez por teimosia, escapou de várias oportunidades de deprimir-se ou de deixar-se dominar por esse ou aquele vício. Com algum esforço, conseguiu formar-se em direito. A vida seguiu. A aprovação no concurso para delegada de polícia a surpreendeu. Sinceramente, não esperava passar.
A nova posição influiu em seu temperamento, que, com o passar dos anos, se tornou ameno e estável. As explosões de ira foram, gradativamente, sendo substituídas por uma conduta mais equilibrada. ‘Camila está mais fria’, chegaram a comentar alguns parentes. Responsável por conduzir investigações complicadas, foi elogiada na imprensa e entre seus pares pela técnica e pelo rigor com que conduzia seu trabalho. Prendeu bandidos procurados há meses. Desbaratou quadrilhas sagazes.
Só se deu por satisfeita, no entanto, quando executou o plano imaginado desde a manhã em que acordou com as pernas abertas, ardendo, ainda em alto mar. A passos largos, aproximou-se da cama de Tia Vilma, irmã de sua mãe, agora viúva, como quem sabe exatamente a que veio.
*Jornalista. Presidente da Academia Mineira de Letras
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