A desconstrução do ensino público e privado no Brasil
Nair Costa Muls*
Em várias oportunidades tenho ressaltado em artigos no DC a importância da educação, em todos os seus níveis, como o caminho por excelência não só para a formação dos indivíduos como para a sua emancipação e a sua transformação em sujeitos históricos ─ capazes, portanto, de agir e transformar a sociedade ─, mas também, e sobretudo, para o desenvolvimento independente e soberano da economia do País. A escola deve ser responsável por uma formação libertadora, crítica, fundada nos valores humanos e na ética. Ensinar não apenas a escrever e a contar, mas ensinar a pensar, dando ao aluno autonomia, capacidade de diálogo, de entender e aceitar as diferenças, de se transformar em protagonista da história.
Por outro lado, em várias edições do “Diálogos DC”, discutindo-se também a importância da educação, concluiu-se sobre a necessidade de um novo modelo de escola e de sistema educacional, que reflita a sociedade que queremos e possa ser, efetiva e eficazmente, voltado para o desenvolvimento da pessoa humana e da sociedade.
No que concerne a universidade, lembro-me especificamente de um artigo (DC 12/03/2008) em que dizia que a universidade é o ‘locus por excelência do desenvolvimento científico, tecnológico e cultural, fundamental para o desenvolvimento de uma nação”.(…) “sem um ensino superior de qualidade, país algum tem condições de defender a sua soberania e a sua independência econômica diante de um mundo em acelerado desenvolvimento científico e tecnológico, no qual o conhecimento se tornou uma das principais forças produtivas do capital”. Através do ensino, da pesquisa, da extensão e dos diferentes níveis de pós-graduação, a universidade forma técnicos e quadros profissionais competentes, docentes e pesquisadores qualificados, capazes de buscar soluções para os mais variados e diferentes problemas da sociedade onde está inserida, e estender os conhecimentos produzidos e acumulados a setores cada vez mais amplos da sociedade. Ademais, forma também cidadãos conscientes, capazes de entender a sociedade onde vivem e contribuir para a sua transformação em sociedades justas, igualitárias, soberanas e econômica e socialmente avançadas.
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Para cumprir esses objetivos é preciso apresentar ao aluno as diferentes facetas do pensamento científico, as diferentes teorias explicativas dos mais variados fenômenos em quaisquer das áreas do saber, das ciências exatas às biológicas, humanas e ou sociais e políticas, não da forma estanque como tem sido, mas de maneira multidisciplinar e, melhor ainda, transdisciplinar. Fazê-lo pensar, duvidar, comparar, criticar, argumentar e, assim, chegar ao conhecimento necessário.
Esse papel inerente à universidade só pode ser exercido num clima de total liberdade. A nossa Constituição assegura o pluralismo político como fundamento da República, assegura a liberdade de expressão e de opinião independente de censura ou de licença e mais, estabelece a autonomia da universidade no cumprimento do objetivo instituído pela Constituição: “construir uma sociedade livre, justa e solidária, promover o desenvolvimento nacional, diminuir as desigualdades regionais e locais”.
Sem atropelos de mercados, governos, partidos ou líderes políticos…
Todavia, há algum tempo se registra uma campanha de desmoralização do ensino superior público e de reformulação do ensino básico numa direção negativa. Estarrecedora, preocupante e significativa foi também a forma com que a Polícia Federal e outras entidades do Poder Judiciário se conduziram em relação às universidades públicas. Casos de condução coercitiva como aconteceu em várias universidades brasileiras (UF Paraná, UF Triângulo Mineiro, UF Sul da Bahia, UFSC (que resultou na prisão de reitor e seu consequente suicídio). Ações sempre espetaculares e arbitrárias, num total desrespeito à autonomia constitucional da universidade, às quais se juntaram, no governo Temer, o corte de 44% das verbas destinadas à ciência e tecnologia, e, numa portaria de julho de 2017, a flexibilização e a implantação de cursos superiores na modalidade Ensino a Distância. Trágica ameaça ao ensino presencial, onde se dá, na verdade, o diálogo, o debate e a troca entre professores e alunos, fundamentais para a formação dos alunos.
No novo momento que vivemos ─ era Bolsonaro─ ajunta-se outro perigo, talvez mais grave ainda, agora ameaçando todos os níveis do ensino, tanto no público quanto no privado: tenta-se limitar a liberdade de ensino, com a esdrúxula ideia da “Escola sem Partido”, num esvaziamento total da função da escola e da universidade.
A Lei da Mordaça é uma ameaça às liberdades democráticas, à pluralidade política, de ideias e de concepções pedagógicas como se a escola pudesse existir sem a apresentação das diferentes formas de pensamento e de teorias científicas, sem a discussão do significado, objetivos e implicações de cada uma delas. Cabe ao professor apresentar com qualidade as diferentes questões e fazer o aluno refletir, possibilitando o pleno desenvolvimento da criança, do adolescente e do adulto, o seu preparo para o exercício da cidadania e mais, tarde, a sua qualificação para o trabalho, construindo o seu conhecimento e suas aptidões como profissional e como ser humano e, portanto, ser social, cidadão.
A educação, nos seus diferentes graus, é um direito de todos, um bem público e uma política de Estado, inseparável do projeto de nação. Urge restabelecer a compreensão do papel da universidade e do ensino de modo geral e assegurar a liberdade e a autonomia do ensino. E essa tarefa cabe a todos nós.
*Doutora em Sociologia, professora aposentada da UFMG/Fafich
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