Pato laqueado e guisado canino

Cesar Vanucci*
“… sofre grande perda quem não consegue provar o pato laqueado de Beijing.” (Ditado chinês)
Volto, nestas maldatilografadas, aos pratos exóticos. Peço permissão para falar de duas atordoantes experiências gastronômicas. Ambas passadas na China. Antes de mais nada, toca-me confessar, em lisa verdade, ser um apreciador entusiasmado da chamada “comida chinesa”. Tive, a propósito, baita surpresa quando, visitando a China, constatei, desconcertado, não existir ali “comida chinesa”. Pelo menos, “comida chinesa” com essa configuração de pratos que se nos é oferecida aqui em nossas bandas. Pratos que, bem provavelmente, representem variáveis, com adaptações ao jeito ocidental, dos tradicionais sabores de origem.
O conteúdo continua após o "Você pode gostar".
Outra surpresa e tanto: por mais que procurasse, não encontrei, também, na viagem ao império do Centro, um estabelecimento que vagamente lembrasse nossas manjadíssimas “pastelarias chinesas”. E pensar que esses pontos de venda especializados em apreciadíssimos quitutes fritos, acham-se espalhados por tudo quanto é canto do imenso continente brasileiro! Cheguei, na ocasião, à conclusão de que na China não existe, também, “pastel chinês”…
Mas, se não existe “pastel”, existem no pantagruélico cardápio chinês, de gosto, aroma e colorido via de regra sedutores, iguarias bem extravagantes, a começar com os guisados de cachorro e a arrematar com o famoso “pato laqueado”. O grupo de turistas de que fazia parte foi levado a conhecer, em Pequim, o mais antigo restaurante do mundo, célebre, além da espantosa longevidade (mais de mil anos, segundo o guia) pela preparação de um acepipe decantado, mundo afora, em verso e prosa, como o supremo e mais nobre instante do requinte culinário: o pato laqueado à moda pequinesa. A origem desse prato, uma referência cultural relevante, se perde no fundo dos tempos. Um ditado popular chinês apregoa que quem não visita a Grande Muralha sofre grande perda, mas a perda é ainda maior para aqueles que não conseguem provar o pato laqueado de Beijing.
Pois bem, este despretensioso escriba de quimeras agarrou-se, emocionado, aos ganhos humanísticos óbvios que a visita inesquecível à portentosa Muralha proporciona, mas não se sentiu ilaqueado (sem intenção de fazer trocadilho), hora alguma, ao não conseguir provar, por falta de um mínimo de entusiasmo, o pato laqueado de Beijing. Levaram-me a ver as aves estiradas nos varais, ali deixadas dias a fio para receber o tratamento aromático que antecede a ida ao fogão com achas de lenha frutíferas. Não gostei do que vi. Perpassou-me pela imaginação a desagradável sensação de que a posta de carne à vista estava pendurada desde a inauguração do restaurante. Não comi e não gostei. Fiquei com o estômago meio embrulhado. Entre os que comeram, houve quem também não apreciasse nadica de nada a famosa iguaria.
Num outro momento gastronômico indesejável, vi-me, de repente, em magnífico hotel na cidade de Chengdu, próximo da fronteira com o Tibete, numa mesa de refeições onde o prato de sustentação, a pedido dos comensais, era simplesmente carne de cachorro. Casquei fora, outra vez.
Para evitar equívocos desagradáveis, limitei-me a pedir à linda garçonete, envergando colorido e charmoso traje típico, torradas com chá. Mesmo em se tratando de torradas, cá pra nós, não foi nada fácil digeri-las, diante da incomum voracidade das pessoas atraídas pela novidade do guisado posto na mesa.
A lembrança da cena do jantar acompanhou-me, manhã seguinte, no voo para Lhasa, no Tibete. No lanche de bordo, serviram aos passageiros um petisco que lembrava a carne de sol de Montes Claros. Acabara de pedir repeteco do petisco quando o comandante anunciou que estávamos a sobrevoar a deslumbrante cadeia do Himalaia, aconselhando os passageiros a se dirigirem às janelas para contemplá-la. Não consegui desfrutar por inteiro da deleitosa visão. Bateu-me, de repente, a perversa suposição de que o naco de carne ingerido era de algum frigorífico provido de canil.
Fiquei meio mareado e só aquietei o espírito quando a aeromoça chinesa me explicou, amavelmente, que a carne servida era bovina. Mas antes da explicação vi-me apoderado de incontrolável mal-estar. O “pânico” foi de tal tamanho, gerou sensação tão desagradável, que me pareceu, na hora, irrelevante a alucinatória hipótese de que o avião das Linhas Aéreas Chinesas pudesse chocar-se com o pico do Everest. Pra vocês verem…
Semanas mais tarde, em Belô, com amigos chineses, donos de restaurante, comentei o episódio. Eles pediram pormenores a respeito do lanche. Consultaram-se com olhares, estabelecendo consensualmente a opinião de que a carne servida no avião era mesmo de cachorro.
Deixei-me tomar, ali mesmo, daquele estado de espírito que, de quando em vez, “acomete” inveterados tabagistas e que acaba compelindo-os à “inabalável” decisão de parar com o hábito. Abstive-me de comer carne. Por algum tempo. Deu recaída.
- Jornalista ([email protected])
Ouça a rádio de Minas