O Corvo (VII)
Estou sentado em uma cadeira, aparentemente a mais central de todas; na plateia, além de mim, vejo apenas uma mulher impassível, com uma veste negra que, por um momento, é iluminada por uma suave luz amarela saindo do teto. O capuz que cobre sua cabeça não me permite ver o seu rosto.
Ao fundo, o refrão When they said: repent, repent, da música “The Future”, de Leonard Cohen, me chama atenção e me faz lembrar o quão grave e marcante era a voz do cantor e poeta canadense.
As cortinas se abrem lentamente, deixando à vista uma grande tela cinzenta. A música é silenciada, e a única luz vista no momento é a de um raio luminoso, vindo de um projetor situado no teto do cinema, cujo feixe termina na tela, que exibe a seguinte legenda: Crônica de uma morte anunciada. A legenda desaparece em segundos e dá lugar à projeção de um filme, cujo primeiro take, tomado em um plano geral, mostra a casa onde passei toda a minha infância e parte de minha adolescência, iluminada por um sol prestes a se recolher. À frente da minha antiga casa, uma grande extensão de terreno, onde se pode ver um pé de mangueira, com uma grande copa, muitas laranjeiras e uma árvore com frutos vermelhos, que, se não me falha a memória, é um antigo pé de jambo. Anoitece. A câmera volta-se para o interior da casa e me mostra um grande salão com uma mobília rústica, provavelmente feita por algum artesão. Em uma dessas salas, duas grandes mesas, com meia dúzia de cadeiras, algumas poltronas e uma também grande cristaleira, que guarda entre outras coisas um conjunto de bule de café com motivos florais e pequenas xícaras, duas grandes terrinas, que eu julgo serem de Sacavém, pratos de diversos tamanhos e muitos copos. Um corredor sai da sala em direção à cozinha, mas, antes que lá desemboque, notam-se nele três portas abertas, que dão acesso aos quartos. Na cozinha, sobre uma ampla mesa retangular, um lampião a querosene ilumina a primeira página de um jornal com anúncios classificados de amas-secas.
Em seguida, vejo um casal discutindo sobre alguma coisa. A penumbra que toma conta do ambiente não me permite, em um primeiro momento, identificá-los. Dá, no entanto, para notar que a mulher está grávida. Agora a câmera se aproxima e posso ver claramente que o casal, na verdade, são os meus pais. Eles parecem discutir sobre a escolha de um nome para mim, seu filho único. Pelo tamanho da barriga de minha mãe, devo estar prestes a nascer.
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Depois de muita indecisão, optaram por Maurice Maurel, nome com o qual fui batizado. De certa feita, me contaram que alguém havia dito aos meus pais que, se o significado de um nome valesse alguma coisa, eu seria uma pessoa organizada, muito ligada à família, chegando, até mesmo, a esquecer de mim próprio para pensar nos outros. A profecia pode ter se realizado em relação a sempre pensar muito em ajudar os outros, mas não a ponto de esquecer de mim mesmo. E foi só isso. Longe estou de ser uma pessoa organizada, e mais longe ainda de ser seduzido pelos laços familiares.
*Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”
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