CVM investiga ex-executivos da Americanas em sigilo

Rio de Janeiro – Três ex-executivos da Americanas são os principais alvos de inquérito administrativo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sobre possível uso de informação privilegiada na venda de ações da varejista antes do estouro da crise mira principalmente.
O documento, ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso, aponta que o ex-presidente Miguel Gutierrez e os ex-diretores Anna Saicali e João Guerra Duarte Neto realizaram em 2022 vendas “substancialmente superiores” às operações de anos anteriores.
O inquérito ainda não foi concluído e é mantido em sigilo pela CVM, que aprovou também o envio das informações ao Ministério Público Federal – já que, segundo a autarquia, há “indícios da prática de crime de ação penal pública”.
A intensificação de vendas de ações da Americanas nos meses que sucederam a divulgação das inconsistências contábeis já havia sido identificada com base em documentos públicos que a própria empresa é obrigada a enviar à CVM, mas sem identificar os vendedores.
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Após o estouro da crise no dia 11 de janeiro, a autarquia solicitou à B3 informações sobre as operações realizadas por administradores da empresa entre 2019 e 2022.
Concluiu que o elevado volume negociado no ano retrasado “reforça a hipótese de que essas pessoas já tinham conhecimento da situação financeira da companhia e se desfizeram de suas ações prevendo a desvalorização que poderia decorrer da divulgação dessas informações”.
Gutierrez, por exemplo, teria negociado 171,1 milhões de ações em 2022, após dois anos sem vender papéis da empresa – em 2019, havia vendido 31 milhões. O retorno à Bolsa para vender ações, diz o relatório da CVM, configura alteração no perfil do investidor.
Saicali, por sua vez, teria negociado 59 milhões de ações em 2022, contra 4,7 milhões em 2020 e 17 milhões em 2019. Já as negociações de Duarte Neto somaram 3,8 milhões de ações em 2022, ante 350 mil em 2020 e 980 mil em 2019. Nenhum deles fez operações em 2021.
A CVM analisou operações de outros executivos. Mas viu coerência em relação ao histórico de anos anteriores ou até volumes inferiores de negociações. “Diante dos fatos expostos, considera-se possível que os investidores aqui elencados podem ter realizado operações com ativos de emissão da Americanas com o conhecimento de informações ainda não divulgadas ao mercado”, afirma o documento.
Em depoimento à CVM, Gutierrez diz que foi informado em 1º de julho de 2022 que perderia o cargo para Sergio Rial, então no Santander. As vendas de ações da empresa por diretores intensificaram-se a partir deste mês, atingindo o pico em setembro.
Inconsistências
Em janeiro, Rial anunciou ao mercado que as finanças da varejista tinham inconsistências no valor de R$ 20 bilhões, diante de falhas na contabilização de operações de antecipação de recebíveis a fornecedores, operações conhecidas como risco sacado, e de bônus por publicidade de produtos nas lojas da varejista.
“O crime de ‘insider’ é uma forma de roubar investidores de boa-fé que é punida com décadas de cadeia em países que possuem um mercado sério”, diz o presidente da Associação Brasileira e Investidores (Abradin), Aurélio Valporto.
“Além de ser um roubo, mina a credibilidade do mercado e afasta investidores, que são essenciais para o desenvolvimento da economia. Há fortes indícios de que os investigados cometeram este crime e, por isso, devem ser não apenas punidos pela CVM, como denunciados criminalmente”, avalia.
Em nota, a defesa de Gutierrez disse à Folha que ele “nega a prática de insider trading e informa que todos os esclarecimentos sobre o assunto estão sendo prestados nas esferas próprias”. Ele já havia negado em depoimento à CVM, no qual alegou que permanecia como um dos principais acionistas da companhia. (Nicola Pamplona)
Escândalo contábil envolve cerca de R$ 25 bi
São Paulo – Trezentos e sessenta e cinco dias após vir à tona um escândalo contábil de cerca de R$ 25 bilhões, envolvendo uma das maiores varejistas do País, a maior parte dos públicos de interesse da Americanas (“stakeholders”) sofre com os efeitos da crise.
Os mais prejudicados até o momento são funcionários – 25% da equipe cortada (32.486 colaboradores) -, fornecedores, credores -desconto de 50% a 80% da dívida, para pagamento entre quatro e 20 anos -— e acionistas minoritários -a ação desvalorizou 93% desde 11 de janeiro de 2023, quando foram reveladas “inconsistências contábeis”, até o pregão da última quinta (11), data em que fechou a R$ 0,79.
Para além de perdedores e vencedores, na maior crise corporativa da história do País existem alguns remediados. Na opinião de consultores em varejo ouvidos pela reportagem, é nesta categoria que se encontram os principais acionistas da Americanas – o trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira e os maiores bancos do País, principais credores da varejista, com cerca de R$ 20 bilhões a receber.
Os dois lados, bancos e bilionários, protagonizaram brigas midiáticas nos tribunais desde a descoberta da fraude contábil. Mas agora serão sócios da “nova Americanas”. Isso porque o plano de recuperação judicial, aprovado em 19 de dezembro, inclui o aumento de capital da companhia via emissões de novas ações. Serão R$ 12 bilhões para os acionistas controladores e até R$ 12 bilhões para os bancos, que converterão em papéis a maior parte da sua dívida.
Para os bancos, ficou a ideia de que não se pode culpar o trio de bilionários porque não foram encontradas provas contra eles – por mais que as instituições financeiras (em especial Bradesco e Safra) tenham tentado judicialmente chegar à caixa de emails de Sicupira, o representante do trio na Americanas, onde é membro do conselho.
Com isso, a culpa pela fraude contábil recaiu sobre a antiga diretoria da empresa, informou à reportagem uma fonte do mercado financeiro que acompanhou a negociação entre a varejista e os bancos.
Já o trio de bilionários, embora tenha visto parte do seu patrimônio virar pó com a derrocada do valor das ações, terá mais poder na “nova Americanas”: juntos vão somar 46% ou 49,3% das ações da varejista, a depender do resultado do aumento de capital. Até agora, têm 30,1%.
“Eles serão os maiores acionistas de uma nova empresa real, não com balanços fictícios, como os apresentados nos últimos anos”, diz o advogado tributarista Diogenes Mizumukai Rodrigues, sócio da BMFK Sociedade de Advogados.
“Ficaram com uma empresa saneada, ainda que não se saiba o quanto ela vai valer”. Para ele, bancos e bilionários estão longe de serem perdedores na crise. Condição muito pior, diz Rodrigues, é a dos minoritários e a dos fornecedores. “A participação dos minoritários tende a desaparecer na nova configuração”, alerta.
Vantagem
Na opinião do administrador de empresas André Krizak, do ponto de vista dos minoritários, o trio de bilionários foi de certa forma favorecido, uma vez que estão há décadas à frente de uma varejista que deixou uma dívida de R$ 50 bilhões (incluindo pendências entre empresas do grupo), mas vão aportar R$ 12 bilhões, além de aumentarem a sua participação na companhia. “Não deixa de ser algo vantajoso”, avalia.
A advogada Marina Blattner, sócia do escritório Wald, que representa a holding LTS, do trio de bilionários, afirmou que esse raciocínio não faz sentido. “Os minoritários estão sendo extremamente beneficiados”, diz Marina. “O plano vai ajudar a companhia a voltar a gerar valor, a se reerguer. Além disso, eles podem participar do aumento de capital”, argumenta.
Já a Americanas ressaltou, em nota, que “o preço do aumento de capital previsto no PRJ (plano de recuperação judicial) observa todas as regras e legislações vigentes e está em linha com as melhores práticas de mercado”. (Daniele Madureira)
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