A ONU e o ministro (II)
“O respeito à Constituição (…)
representa limite inultrapassável.”
(Ministro Celso de Mello, do STF)
Conforme demonstrado no comentário “A ONU e o ministro (I)”, o voto do ministro Celso de Mello, na sessão do STF do dia 4 de abril de 2018, exprimiu com exatidão o entendimento jurídico atinente às cautelas rituais exigidas nos casos de decisões condenatórias que ainda comportem procedimentos recursais perante instância superior de julgamento. Inteirada do teor das manifestações de acatados organismos e de conceituados especialistas de dentro e de fora do País, a opinião pública pôde constatar que a peça jurídica da lavra do decano da Alta Corte sobre o que venha a ser “trânsito em julgado” examinou à exaustão e retratou fidedignamente a doutrina jurídica mundialmente consagrada sobre a candente matéria.
Num pronunciamento que se estende por 61 laudas, Celso de Mello faz questão de sublinhar que “o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado.” Lembra que “já se distanciam (…) os dias sombrios que recaíram sobre o processo democrático” e que a experiência a que o Brasil se submeteu, no regime de exceção, deixou marcante advertência, que não pode ser ignorada, por representar momento “de grave inflexão no processo de desenvolvimento e consolidação das liberdades fundamentais.” Anota que sua análise não envolve a apreciação do litígio penal instaurado no processo-crime que tem Lula como réu. Do que mesmo se ocupa é da controvérsia jurídica “resultante dos debates em torno da extensão e abrangência da presunção constitucional de inocência, tal como reconhecida pelo direito constitucional positivo brasileiro (Constituição Federal, art. 5º, inciso LVII)”. Sua preocupação – pontua – é precisar “o momento a partir do qual a pessoa sob persecução criminal em elaboração pode ser legitimamente considerada culpada, especialmente para efeito de sua imediata submissão à prisão penal (…), tão logo esgotado o duplo grau de jurisdição pelo pronunciamento, embora recorrível, de um Tribunal situado em segunda instância.”
Frisa, por outro lado, que os julgamentos do STF, imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, “como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões.” Se isso porventura ocorre há risco de “subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais”, asseguradas pela ordem jurídica.
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Visto está que o voto do ministro foi ancorado em substanciosa jurisprudência e menções a julgados pretéritos dentro da mesma linha conceitual de apego intransigente ao texto constitucional e às leis da República. Os trechos vindos a seguir foram pinçados entre outros muitos igualmente magistrais.
“Nenhum dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios, ou a manipulações hermenêuticas, ou, ainda, a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência ou de pragmatismo (…)” “Há quase 29 (vinte e nove) anos tenho julgado a controvérsia ora em exame sempre no mesmo sentido, ou seja, reconhecendo, expressamente, com fundamento na presunção de inocência, que as sanções penais somente podem sofrer execução definitiva, não se legitimando, quanto a elas, a possibilidade de execução provisória, em razão de as penas impostas ao condenado, a qualquer condenado, dependerem, para efeito de sua efetivação, do trânsito em julgado da sentença que as aplicou.” (…) “A presunção de inocência não impede a imposição de prisão cautelar, em suas diversas modalidades (…), tal como tem sido reiteradamente reconhecido, desde 1989, pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal.”(…) “Insista-se (…) na asserção de que o postulado do estado de inocência repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em relação à pessoa condenada, a presunção de que é inocente.” (…) “O postulado constitucional da presunção de inocência impede que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível.”
Admirável a forma serena e equilibrada que Celso de Mello achou para expressar, antecipando-se a outras vozes jurídicas credenciadas, sem se deixar impregnar da incandescência ideológica reinante ao redor, o entendimento apropriado sobre questão tão relevante, estribado na arraigada crença no saber jurídico universal que pontua sua trajetória como magistrado.
* Jornalista ([email protected])
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