Da reação à prevenção: saiba como se adaptar à nova era da saúde mental no trabalho

Prevenir em vez de remediar. O que antes era um mantra da saúde pública agora é lei. A atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1) obriga as empresas a tratar a saúde mental não mais como um problema individual do funcionário, mas como um risco ocupacional que precisa ser gerenciado em sua origem. A fiscalização já tem data para começar: 26 de maio de 2026. Até lá, as empresas precisam se adaptar a essa nova era da saúde mental no trabalho.
No entanto, o nível de preparo das organizações no Brasil ainda é bastante heterogêneo, segundo o médico do trabalho e diretor de Relações Internacionais da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), Ricardo Turenko.
“Em geral, empresas de grande porte, que contam com estruturas de Saúde e Segurança do Trabalho (SST) maiores e mais consolidadas, adaptam-se com mais facilidade a essas mudanças. Mas a maioria, especialmente as pequenas e médias, muitas vezes não tem conhecimento técnico nem equipes para implementar essas avaliações”, observa.
Isso torna alguns setores mais vulneráveis, até pela própria natureza das atividades. “Saúde, educação, segurança pública, setor financeiro e serviços de atendimento ao cliente são marcados por uma demanda emocional muito mais intensa”, exemplifica.
O advogado trabalhista Conrado Di Mambro, conselheiro seccional da OAB-MG, explica que, independentemente do porte da empresa, a NR-1 terá de ser cumprida.

“Toda empresa que possui ao menos um empregado está sujeita às normas de saúde e segurança no trabalho. Mas algumas apresentam graus de risco diferentes, de acordo com sua atividade. Uma atividade administrativa em um escritório de contabilidade, por exemplo, tem risco menor que o trabalho em uma mineradora. E há empresas que, de acordo com o número de funcionários, são desobrigadas de manter uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa)”, comenta.
Nesse sentido, grandes empresas podem contar com um médico do trabalho in loco ou até um departamento de medicina do trabalho, enquanto negócios menores costumam terceirizar o serviço. O advogado observa que os processos trabalhistas por adoecimento de trabalhadores têm aumentado e considera natural que a legislação acompanhe esse movimento.
Segundo a Anamt, do ponto de vista técnico, os desafios são principalmente metodológicos e culturais, pois, diferentemente dos riscos físicos, químicos, biológicos e ergonômicos, os riscos psicossociais são mais subjetivos.
“Também podemos observar outros pontos críticos, como a necessidade de atualização e capacitação contínua dos profissionais de SST para lidar com essa nova demanda e, ainda, a habilidade de tornar os ambientes de trabalho com o nível de confiança elevado para que os trabalhadores se sintam seguros ao relatar seus problemas e dificuldades”, esclarece Ricardo Turenko.
Para o psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, o empenho das empresas em cumprir a nova norma pode ajudar a reduzir consideravelmente os casos de esgotamento profissional. Ele lembra que a NR-1 obriga as empresas a realizar diagnóstico organizacional e implementar medidas de controle, como redistribuição de cargas, melhoria das relações interpessoais, criação de canais de denúncia e gestão de turnos.
“A ABP entende que essa iniciativa, alinhada às diretrizes da OMS, pode reduzir significativamente a incidência de burnout, depressão e ansiedade, desde que seja acompanhada de engajamento real das lideranças e de políticas internas de prevenção”, conclui.
Destrinchando o burnout
Apesar de ter sido “descoberto” na década de 1970, o burnout só foi reconhecido formalmente como doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019. Na legislação brasileira, a condição causada pelo esgotamento profissional foi incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID) apenas em 2022.

A psicóloga Elisabeth Lacerda, coordenadora da Comissão de Orientação Temática em Psicologia Organizacional e do Trabalho do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), contextualiza a tipificação do burnout.
“É preciso lembrar que a OMS define saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas como ausência de doença ou outra enfermidade. Até pouco tempo atrás, o burnout não era considerado uma doença do trabalho, mas um problema ligado à organização do modo de vida do trabalhador. Em resumo, ele significa que alguma coisa deixou de funcionar adequadamente no indivíduo em razão da exaustão extrema causada pelo trabalho”, explica.
A exaustão emocional é uma das características do burnout e ocorre quando o profissional percebe que não tem mais condições de investir a energia que o trabalho exige. Pode haver também conflitos nas relações entre colegas ou com a chefia e a despersonalização, que é quando o indivíduo se desconecta do corpo e da mente e passa a ver as situações como mero observador. Ou seja, cria uma barreira para não permitir a influência dos problemas e do sofrimento alheio em sua vida.

A psicóloga Stella Goulart, PhD em Saúde Mental Coletiva, explica que os sinais da doença são mecanismos de defesa. “É uma forma de enfrentar uma situação muito aversiva. Quando a autodefesa passa a depender do corpo e da subjetividade, é porque a situação já está complicada e mostra que, obviamente, a pessoa está triste e insatisfeita com o trabalho”, diz.
Ela reforça que saúde não é um conceito estático: “É algo que deve ser construído coletivamente, dependendo das condições e exigências de cada trabalho; e este é um elemento muito importante na NR-1”.
Apesar da percepção coletiva da saúde no trabalho, ela também deve ser tratada individualmente, já que os sintomas não são universais.
“Cada pessoa vivencia o sofrimento de uma forma específica. Isso depende da resistência e da resiliência de cada um, da capacidade de suportar situações de estresse ou ameaçadoras. Além disso, há trabalhos que exigem da pessoa uma atitude diferente, uma prontidão distinta”, completa.
Já Elisabeth Lacerda ressalta que também é possível desenvolver o problema em uma situação de desemprego: “A pessoa pode apresentar estresse e burnout por estar desempregada. A falta de trabalho impede que ela tenha uma vida normal, pois não consegue atender a necessidades básicas como pagar o aluguel, manter uma alimentação adequada e ir ao médico. Isso gera sensação de mal-estar, de incapacidade e de baixa autoestima”.
Apagão cerebral
Mesmo tão jovem, a professora Yasmin Brandolize, já enfrentou burnout três vezes nos últimos dois anos. Um dos sintomas que apresentou foi o chamado apagão cerebral.
“Fui notando um apagamento de visão e, ao longo do dia, meu cérebro começou a desligar, algumas vezes, em sala de aula. Eu tinha momentos em branco; simplesmente não lembrava do que acontecia. Também comecei a ter crises muito fortes de choro, não conseguia mais controlar as emoções e estava sempre irritada. Passei a tomar muito café e energético para ver se conseguia ficar acordada. Mas não era algo físico”, lembra.
Além do burnout, ela também foi diagnosticada com depressão e síndrome do pânico. Os sintomas surgiram em meio a uma rotina extenuante: trabalhava oito horas por dia, fazia faculdade à noite e morava sozinha, tendo que arcar ainda com os cuidados da casa e as finanças.
“Foi muito difícil conciliar tudo, eram muitas coisas para fazer ao mesmo tempo. Então, comecei a abrir mão do lazer, a trabalhar nos finais de semana. Não tinha mais tempo para os amigos nem para meu namorado”, lembra. E também parou de fazer terapia.
Ela só percebeu que havia um problema quando as pessoas ao redor começaram a se preocupar. “Meu namorado e minhas amigas do trabalho começaram a questionar se havia algo errado, porque eu também estava deixando de comer no horário do almoço para continuar trabalhando ou dormir. Então, meus amigos passaram a ir à minha casa para fazer alguma coisa comigo ou levar comida. Foram essas atitudes que me ajudaram, pois sozinha é muito difícil melhorar. Isso me deu força para buscar um tratamento psiquiátrico”, relata.
Nas crises posteriores de burnout, foi mais fácil reconhecer o problema. Yasmin conseguiu identificar os sintomas e acionar os profissionais de saúde. “Por mais que eu não estivesse mais na faculdade, como professora a gente acaba levando trabalho para casa. Na época, eu trabalhava em uma escola de idiomas em escala 6×1, e o ambiente de trabalho começou a se tornar muito tóxico”.
Foi então que decidiu pedir demissão. Hoje, ela dá aulas em uma escola regular dois dias por semana, ministra aulas de reforço e também trabalha com artesanato.

“Comecei há dois meses nessa rotina e, por mais que eu esteja fazendo mais atividades, me sinto mais leve e tranquila. Nada se compara à tranquilidade que tenho hoje, porque nos últimos dois anos vivi um caos emocional terrível. Agora tenho tempo para mim, em vez de precisar ficar oito horas por dia na empresa. Consigo ficar com meus gatos, ver minha mãe, meu namorado e meus amigos. Sinto-me emocionalmente descansada e tenho tempo para comer melhor e dormir bem”, conclui.
Como as empresas podem contribuir para ambientes de trabalho saudáveis e produtivos
Para Ricardo Turenko, da Anamt, a conformidade com a NR-1 é apenas o ponto de partida, o patamar mínimo. “As empresas que realmente se destacam são aquelas que integram o cuidado com a saúde mental à própria cultura e estratégia”, diz.
Segundo ele, essa postura se traduz em ações concretas que vão além do exigido, como:
- investir na capacitação de líderes para uma gestão mais humana;
- promover ativamente uma cultura de diálogo que combata o estigma;
- garantir o equilíbrio real entre vida profissional e pessoal, com políticas claras de desconexão;
- oferecer canais de apoio psicológico que sejam não apenas confidenciais, mas também facilmente acessíveis.
“Recomendo sempre ir além do mínimo legal, com o objetivo de construir ambientes psicologicamente seguros para todos, tratando essa meta como um pilar de sustentabilidade e de sucesso do negócio”, observa.
A psicóloga Stella Goulart reforça a importância do diálogo. “O empregador precisa ser capaz de abrir o diálogo, inclusive com os sindicatos, porque, se não é capaz de conversar com eles, que dirá ouvir o setor de recursos humanos. Outra sugestão é a conhecida ‘caixinha de denúncias’, um espaço para que o trabalhador, de forma discreta e anônima, possa relatar seu sofrimento. O diálogo honesto e respeitoso é um instrumento valioso e, historicamente, necessário para qualificar o trabalho. Precisamos de trabalhadores, e precisamos que eles estejam bem para serem produtivos”, salienta.
A psicóloga Elisabeth Lacerda lembra que o cuidado com a saúde mental envolve diretamente o ambiente de trabalho.
“É preciso zelar pelo espaço onde os funcionários realizam suas tarefas e garantir que se sintam bem ali. Se não há o equipamento adequado para executar o serviço, não há como cobrar melhor resultado quando o profissional é responsabilizado por algo que não depende dele. Isso também afeta a produtividade e a satisfação com o trabalho. E os clientes percebem a qualidade do serviço prestado, o que acaba gerando resultados para o empregador”, diz.
A ABP também lista boas práticas para evitar o adoecimento mental dos trabalhadores, como:
- investir em programas organizacionais que reduzam demandas excessivas, promovam equilíbrio entre vida pessoal e profissional e ampliem a autonomia dos trabalhadores;
- capacitar gestores para identificar precocemente sinais de sofrimento psíquico e mitigar fatores de risco, como estresse, assédio e sobrecarga mental, prevenindo ambientes insalubres do ponto de vista psicofisiológico;
- ampliar o acesso a serviços especializados, tanto no SUS quanto na saúde suplementar e ocupacional, assegurando atendimento tempestivo e de qualidade;
- integrar políticas públicas intersetoriais (Saúde, Trabalho e Educação) voltadas para vigilância, prevenção, cuidado e reinserção laboral;
- fomentar pesquisas e sistemas de monitoramento contínuo, permitindo avaliar resultados e ajustar políticas com base em evidências científicas.
Além disso, a associação recomenda intervenções organizacionais para reduzir afastamentos e promover ambientes saudáveis e produtivos, como a redução de cargas, maior previsibilidade de jornada, participação dos trabalhadores nas decisões que lhes afetam e programas de retorno ao trabalho. Outra orientação é implementar políticas claras contra assédio e discriminação, além de promover a comunicação aberta sobre saúde mental.
“A ABP entende que essas medidas devem ser tratadas como prioridade de saúde pública e de desenvolvimento sustentável. Além disso, colocamo-nos à disposição para apoiar empresas e o setor público na formulação e implementação de estratégias eficazes para enfrentar esse problema crescente”, afirma o presidente da entidade, Antônio Geraldo da Silva.
* Essa reportagem é a terceira de uma série de três matérias.
- Leia primeira reportagem aqui: Epidemia silenciosa: o que o colapso da saúde mental revela sobre o trabalho no Brasil
- E a segunda, aqui: Adoecimento mental no trabalho custa bilhões à economia e causa danos irreversíveis
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