Gastronomia

Entrevista: sustentabilidade e brasilidade no cardápio de Onildo Rocha

Onildo Rocha já foi considerado o melhor chef do Brasil e foi o responsável pela gastronomia da CASACOR Minas Gerais pela terceira vez seguida
Entrevista: sustentabilidade e brasilidade no cardápio de Onildo Rocha
Crédito: Wesley Diego Emes

Onildo Rocha já foi considerado o melhor chef do Brasil. Pela terceira vez responsável pela gastronomia da CASACOR Minas Gerais, vive um caso de amor com a cultura mineira e não descarta a possibilidade de abrir um restaurante por aqui.

E para falar dessa possibilidade, a valorização dos ingredientes locais, e as dores e delícias de comandar restaurantes premiados que ele conversa, com exclusividade, com o Diário do Comércio.

Onildo, você esteve à frente da gastronomia da CASACOR Minas pela terceira vez. Como tem sido essa experiência?

Eu sou apaixonado por Minas Gerais, pela gastronomia, pelas pessoas, porque é um conjunto. As pessoas são felizes, cozinham e comem muito bem. A gente vem há três anos fazendo esse trabalho com o Chef e o Cabra, um projeto gráfico de branding do Gustavo Greco, que é mineiro, e eu na cozinha, trazendo essa coisa do movimento armorial (iniciativa artística cujo objetivo seria criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro). Trouxemos um pouco de mar do Nordeste para a CASACOR 2024, porque eu sei que o mineiro gosta muito de frutos do mar. No primeiro ano eu vim muito ansioso, com medo de não ser aceito, porque os mineiros são exigentes. E aí, eu fui muito bem recebido. É muito bonito o jeito que as pessoas levantam da mesa e querem falar com o chef, querem parabenizar e valorizar o que estão comendo. 

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Faz muito sentido que uma mostra de arquitetura cuide bem da gastronomia. No mundo a cozinha é muito importante dentro da arquitetura de uma casa, certo?

Sim. A gastronomia está no cotidiano da gente. É um dos princípios de sobrevivência. A gente precisa se alimentar todos os dias, então, a cozinha é o coração da casa. A gente vê, no decorrer do tempo, a cozinha integrando a sala, sendo a protagonista da casa, aberta para receber convidados, para ter pessoas lá dentro. As pessoas estão se interessando cada dia mais por diferentes técnicas para cozinhar em casa. A CASACOR, a cada ano que passa, tem uma interatividade maior com a gastronomia. Moda, arte, gastronomia, está tudo muito ligado. A cada ano que passa, a gente recebe mais abraços e mais carinho dos mineiros. 

Você é conhecido por fazer uma gastronomia sofisticada a partir dos ingredientes locais. Como isso acontece? 

O meu trabalho sempre foi muito pautado na pesquisa do ingrediente local. Eu sou paraibano e abri um restaurante em João Pessoa há mais de 20 anos. Minha carreira de cozinheiro é de mais ou menos 22 anos. Então eu venho construindo isso. A minha escola é francesa. Eu queria usar a metodologia francesa para fazer uma gastronomia local, respeitando o ingrediente local. E eu descobri o manifesto do Ariano Suassuna, que é o Movimento Armorial, que fala, justamente sobre isso, a valorização do local, tirar do popular e elevar a erudita. E, assim, me inspirei nesse movimento e comecei a fazer uma cozinha armorial, que é essa cozinha que valoriza o ingrediente local, tirando-o daquele lugar popular não-valorizado e levando-o para um lugar de valorização.

Passei 12 anos na Paraíba, em João Pessoa, fazendo esse trabalho, e fui para São Paulo, há quatro anos com o Notiê, um restaurante de alta gastronomia. Recentemente ganhamos pelo terceiro ano consecutivo como melhor restaurante brasileiro, então me dá muito orgulho levar um Brasil, uma pesquisa profunda para a mesa. E eu faço agora uma gastronomia Armorial Brasileira.

E, para isso, você faz expedições gastronômicas?

Eu faço pesquisas por vários lugares do Brasil, já passei pela Amazônia, pela Mata Atlântica, agora estamos na Chapada Diamantina, na Bahia. Passamos por aqui, por Minas, fizemos o Rio São Francisco.

A minha pesquisa é embasada no Brasil profundo, trazendo para a mesa a história das pessoas, dos lugares, os ingredientes, sem ser um Brasil caricato, trazendo uma profundidade do Brasil. Esse hoje é o meu trabalho e sempre falo, eu sou cozinheiro. Um cozinheiro pode não ser chef, mas um chef tem que ser um cozinheiro eterno. O que muda é a parte burocrática. Você começa a chefiar um restaurante e tem toda a parte burocrática envolvida nisso. Todo mundo quer ser chef, mas é a parte mais chata. O melhor é ser cozinheiro. Hoje, nos meus restaurantes, eu tenho chefs que estão lá no dia a dia e fazem o controle. Eu estou ali fazendo um trabalho de pesquisa e de construção. Eu faço toda a parte criativa da construção dos menus. É um conjunto de pessoas trabalhando para que aquela engrenagem funcione. Parece fácil, mas não é, mas isso não quer dizer que não seja prazeroso. Se não fosse, eu não estaria nessa profissão. Não é esse glamour da foto que todo mundo vê, mas eu sou muito feliz fazendo o que eu faço.

Interessante que, ao mesmo tempo em que a figura do chef ganhou glamour, a gastronomia brasileira ganhou destaque a partir do momento em que você e outros profissionais passaram a dedicar parte do tempo para usar e falar sobre os ingredientes locais, certo?

Essa valorização é muito recente. A gastronomia no Brasil foi liderada durante muitos anos por pessoas semianalfabetas que não tinham formação, era uma profissão de escape. Quando a academia apareceu no Brasil, há 20 poucos anos, as pessoas começaram a se formar em gastronomia, a entender o negócio, a valorizar os ingredientes. A gastronomia brasileira começou a ser valorizada. O nível sociocultural na cozinha começou a mudar. Então, começou-se a entender, a estudar o que estava por trás daquilo tudo. As técnicas, a cozinha da vovó, os bolos caseiros que viraram febre, enfim, entre outras milhões de receitas, os cafés que começaram a crescer muito no Brasil todo, a valorização do agricultor, que era uma coisa que as pessoas não entendiam.

É valorizar ingredientes, técnicas e pessoas….

Essa coisa de voltar ao campo, de entender o agricultor, da gastronomia entrar na academia é muito importante. O Brasil se empoderou da sua própria cultura nesse momento e começou a ter orgulho. Existem grandes movimentos gastronômicos no mundo. O primeiro foi com os franceses, que criaram a nouvelle cuisine, que começou a empratar exatamente o que as pessoas iam comer, com o Paul Bocuse, o Pierre Troisgros, entre outros. Eu tive a oportunidade de conhecer os dois, de ver essas pessoas pessoalmente e de chegar perto da história da gastronomia do mundo. Depois deles, vieram os espanhóis. O Fernando Adriá veio com uma disruptura total da gastronomia, com a química, com a física na gastronomia molecular. Aí veio o Peru, que fez uma grande transformação no país. O Gaston Acúrio foi o chef responsável por essa transformação. E os nórdicos também, que começaram a empratar, a colocar na mesa de formas diferentes, e o mundo inteiro começou a seguir o mesmo modelo. E, nisso tudo, o Brasil começou a ver que ele também tinha oportunidade, cultura, essa diversidade gigantesca que a gente tem, e foi seguindo o caminho. Então, acho que é uma trajetória longa, mas muito proveitosa, muito bem aceita.

E no Brasil, com toda essa diversidade, são infinitas as possibilidades de combinação.

Sim. Eu viajo, faço uma expedição, e dela eu tiro os insumos, as histórias, para construir o menu. É importante dizer que na minha equipe todos são mineiros. É muito impressionante essa ligação, essa aproximação. O menu mais recente é da Chapada Diamantina. O lugar me impressionou muito por ser Nordeste, mas que pela altitude e a amplitude térmica tem a possibilidade de produzir ingredientes muito inusitados no Brasil. Encontramos uma vinícola na cidade de Mucugê, que se chama Uva, que é incrível, produzindo vinhos de excelência. E a coisa mais inusitada, que eu fiquei muito impressionado, foram as frutas vermelhas. A amora negra é o principal produto local. Conhecemos o agricultor que fez a adaptação dessa fruta para o solo baiano. Trabalhou muitos anos nessa aclimatação. E a amora se deu muito bem e produz o ano inteiro. Hoje ele faz parte de um grupo internacional e tem gente do mundo todo querendo entender como ele conseguiu fazer essa adaptação. Essa é a força do brasileiro, da diversidade, da gente se entender.

E tudo isso conversa com outra preocupação sua, que é a sustentabilidade. Cozinha é um bom lugar para aprender e praticar sustentabilidade?

A sustentabilidade, para mim, é muito mais amplificada do que simplesmente o uso certo do ingrediente, o aproveitamento total. Eu acho que tudo começa por inclusão, por respeito. As dores de cada pessoa são diferentes das suas. Então eu falo muito que teve um momento em que o atravessador virou o grande vilão da cadeia produtiva. Mas não podemos generalizar, o atravessador é um indivíduo muito importante. Ele que faz o negócio fluir. O que estava errado era a forma que era feito aquilo, a desvalorização de quem estava na terra e a supervalorização do produto sem que o produtor soubesse o que estava acontecendo. Então, essa aproximação entre consumidor, chefs e restaurantes do produtor foi muito importante, porque os produtores começaram a entender o valor do produto deles. A cadeia produtiva começou a ficar mais justa. E aí a gente traz isso para a cozinha com respeito a todos nesse processo. Uma vez, observando meus cozinheiros, vi uma menina de 26 anos, que já tinha viajado mais de sete países, falava três idiomas, e outra, que nunca tinha saído da sua cidade, que não sabia ler nem escrever, mas que estava ensinando à menina a técnica de cozinhar o produto que eu tinha pedido para elas. Nesse momento, vi como a cozinha é linear e democrática. Na cozinha a gente consegue colocar pessoas que tiveram possibilidades de vida diferentes, oportunidades diferentes.

Voltando ao início da conversa, porque essa é uma pergunta que todo mundo quer saber. Quando é que você vai ter um restaurante, seja por temporada, uma experiência mais longa do que a CASACOR?

Esse é um desejo de muito tempo. Ele está na fila com prioridade, mas ainda não tenho essa resposta. Sou muito apaixonado por essa terra. Estou em BH nesse momento, pelas pessoas, pela cultura que eu acho que se aproxima muito da minha cultura.

Aproveitando que você disse isso, o que é que tem de parecido, o que é que tem de surpresa, de estranhamento, entre a cozinha mineira e a nordestina?

Acho que o acolhimento é uma coisa muito peculiar das duas culturas. Essa humildade sem ser simples, essa humildade de escutar, de entender, de saber o seu lugar, mas de valorizar. Estranhamente nenhum A única coisa que me estranha hoje, em qualquer lugar do mundo, é a falta de respeito, não entender as outras culturas, as outras pessoas. Mas é isso, o mineiro tem essa coisa muito acolhedora, muito de aproximar. A cozinha mineira é uma das cozinhas que mais sabe utilizar a temperatura, o fogo. Vem desse princípio do fogão a lenha. Digo aos meus cozinheiros que o controle do fogo é muito mais na mente do que na tecnologia. Um bom cozinheiro tem que saber controlar um fogo convencional. Então essa coisa de cozinhar no fogo à lenha, na panela de ferro, é uma coisa muito mineira. Vocês têm um controle muito apropriado e uma comida maravilhosa. É uma cozinha de afeto. E a nordestina também tem muito de cozinha de subsistência. A falta de água do Nordeste é utilizada com muita inteligência. O sertanejo não sobrevive, ele vive! Ele desenvolveu uma tecnologia, um respeito à natureza e ao que tem no entorno, que é muito mais evoluído do que em qualquer outro lugar. Então, isso é muito característico. Acho que são duas culturas muito próximas.

E se não fosse cozinheiro, o que o Onildo seria?
Eu seria músico. Na verdade, eu fui músico na minha infância e adolescência. A gastronomia entrou numa substituição dessa atividade. Eu fiz música como tratamento, porque eu sou mega hiperativo e a música foi um lugar que me acolheu muito. Fui músico dos sete aos 19 anos. Fui spalla da Orquestra Sinfônica da Paraíba jovem e adulta. Depois que saí da música, fui para a cozinha, que já fazia parte da minha vida e onde me reencontrei, embora tenha três cursos: Administração de Empresas, Publicidade e Propaganda, Contabilidade e só depois fiz Gastronomia.

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