Legislação

Anatel tenta regular IA, data centers e conteúdo na internet em meio a resistência

Anatel tenta regular IA, data centers e conteúdo na internet em meio a resistência
Foto: Reprodução Adobe Stock

A Anatel está tentando ampliar suas atribuições em diversas áreas não diretamente relacionadas à infraestrutura de telecomunicações e tem despertado resistências do governo, da sociedade civil e das big techs.


Nos últimos meses, a Anatel baixou uma resolução se concedendo poderes para homologar data centers e vem se posicionando para ser a agência reguladora do Marco Legal da Cibersegurança. Ela também tenta ser a autarquia que supervisiona a regulação de inteligência artificial. Antes, tentou se emplacar como agência reguladora do ECA Digital (Estatuto Digital da Criança e do Adolescente) e do projeto de lei da concorrência em mercados digitais.


Nas palavras de um executivo de uma big techs, a Anatel está agindo como grileiro – tenta ocupar todos os espaços vazios. Uma ala do governo e a sociedade civil temem que a agência concentre muito poder. Mas, na visão de defensores da agência, ela está apenas se adaptando a inovações tecnológicas, como prevê a Lei Geral de Telecomunicações.


Regular novas áreas é uma questão de sobrevivência para a Anatel: setores originalmente regulados pela agência, como a telefonia fixa, estão morrendo.


Em agosto, a agência baixou uma resolução que pegou o setor de data centers e o governo surpresa. Segundo a resolução 780, os data centers que integram as redes de telecomunicações terão de ser homologados pela Anatel, que vai avaliar a eficiência energética e práticas ambientais deles.


A Associação Brasileira de Data Centers (ABCD) entrou com pedido de anulação da regra. Empresas do setor e uma ala do governo acreditam que a Anatel não tem competência para avaliar impacto ambiental de data centers e que deveria homologar apenas data centers das empresas de telecomunicações, e não em geral.


Em reunião com o vice-presidente, Geraldo Alckmin, representantes das empresas reclamaram da resolução da Anatel. Após a reação do setor, a agência abriu uma consulta pública.


“É fundamental que qualquer nova regra seja proporcional, clara no escopo – restrita aos data centers que integram a rede de telecom – e construída com ampla participação do mercado”, diz Luis Tossi, vice-presidente da ABDC. O grupo disse que é preciso “evitar sobreposições e custos desnecessários”.


Para as empresas, já existe regulação da infraestrutura dos datacenters, que precisam seguir regras locais e federais de sustentabilidade, como uso de água e energia. Na nuvem, as regulações recaem sobre quem processa dados – por exemplo, um banco precisa respeitar regras de privacidade, fiscalizadas pela Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Em outros países, a regulação de datacenters costuma ser dividida entre diversas agências setoriais.


Inteligência artificial


Agora, a Anatel tenta ganhar terreno em duas outras áreas – IA e segurança cibernética.O PL 2338, da IA, foi aprovado no Senado no ano passado e está na Câmara.


Pelo texto aprovado no Senado, a ANPD será coordenadora do Sistema Nacional de Regulação e Governança de IA (SIA), organizando várias agências setoriais que regulariam suas áreas, como Banco Central, Anatel, Anvisa, Aneel. Também regularia as big techs.


Mas isso pode mudar na Câmara, onde há forte apoio para que a Anatel cumpra esse papel. “Tenho certeza de que a Anatel é a agência mais preparada para lidar com as questões de IA”, diz o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM).


Uma ala do governo não quer que a Anatel tenha jurisdição sobre conteúdo, concorrência ou IA. Interlocutores afirmam que isso concentraria muito poder em uma agência que, na visão do governo, é controlada por políticos do Centrão.


Como prêmio de consolação, o governo defende que a Anatel fique encarregada da regulação da segurança cibernética. Mas o autor do projeto de lei 4752, o senador Esperidião Amin (PP-SC), quer a criação de uma nova agência para o setor.


“Não criar uma agência nova parece racional para o governo, já que ele não consegue controlar as próprias finanças”, disse Amin. “Mas atribuir (a função) à Anatel, que já não vem fazendo um trabalho bom, é um escapismo…neste momento, isso nem conserta a Anatel, nem resolve o tema da cibersegurança.”


A reportagem enviou uma lista de perguntas à assessoria de imprensa da Anatel, três e-mails e ligou três vezes. A assessoria disse que não tinha respostas da área. A reportagem também enviou as perguntas para o presidente da Anatel, Carlos Baigorri, por Whatsapp. Não houve resposta.

Mercados digitais


A Anatel tentou também regular a moderação de conteúdo na internet e a concorrência em mercados digitais. Algumas versões do PL 2630, o das fake news, apresentado em 2020, determinavam que a regulação ficaria a cargo da Anatel, mas o projeto acabou empacando. Um dos motivos foi a dificuldade de chegar a um acordo sobre quem seria a agência reguladora. O governo apoiava a Anatel, mas a sociedade civil e as big techs se opunham.


O presidente da Anatel, Baigorri, não desistiu. No fim de abril do ano passado, em simpósio na Câmara, Baigorri disse: “Eu já manifestei publicamente diversas vezes que a Agência Nacional de Telecomunicações é a instituição do estado brasileiro hoje mais preparada para assumir, eventualmente, as competências regulatórias no que era o PL 2630”.


Uma das justificativas é de que a Anatel tem poder de polícia sobre as redes de telecomunicações, promovendo o bloqueio no âmbito da infraestrutura – e essa é a única forma de se sancionar as plataformas.


Em fevereiro deste ano, a deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ) apresentou projeto de lei que destinava à Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) a regulação de conteúdos e à Anatel, a econômica e concorrencial. Na época, Baigorri declarou apoio ao texto. O projeto, no entanto, acabou escanteado.

Quando o governo Lula decidiu, no meio do ano, que apresentaria um projeto de lei de moderação de conteúdo, capitaneado pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria de Comunicação, e um de concorrência em mercados digitais, vindo do Ministério da Fazenda, novamente a Anatel tentou se posicionar. Houve entendimento com uma ala do governo de que a ANPD seria a reguladora de conteúdo, e a Anatel ficaria encarregada da regulação antitruste das big techs.


O governo, porém, acabou desistindo de apresentar o projeto do Ministério da Justiça, e enviou ao Congresso apenas o texto que regula a concorrência, que está na Câmara.


Só que o governo deixou a Anatel de fora – o projeto empodera o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para analisar se as plataformas de internet estão adotando medidas monopolistas.

ECA DIGITAL


Com o ECA Digital, o PL 2628, veio uma oportunidade de aumentar as competências da agência. Segundo pessoas envolvidas na negociação do projeto na Câmara, na última hora foi incluída emenda dando poderes à Anatel para atuar em campos normalmente no escopo do Comitê Gestor da Internet (CGI), como os pontos de troca de tráfego e o registro de domínios.


A sociedade civil criticou a emenda. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou, gerando grande insatisfação nos corredores da Anatel. No mesmo dia, porém, Lula publicou um decreto reafirmando as funções originais da Anatel e dando atribuições à ANPD. Na visão do governo, foi uma maneira de reiterar as competências da agência, sem expandi-las.


Não foi a primeira vez que houve uma tentativa de passar para a Anatel atribuições do CGI. Em novembro de 2024, o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) apresentou um projeto que subordinava o CGI à Anatel, que ficaria encarregada de fiscalizar e coordenar o comitê.


“Na regulação de conteúdo digital, a ANPD é muito mais adequada e ainda não foi cooptada pelo mercado”, diz Bia Barbosa, representante da sociedade civil no CGI. Barbosa critica a atuação da Anatel nas telecomunicações. “Os serviços de telecomunicações estão entre os campeões de reclamações no país; se a Anatel já não faz isso direito, imagine se ampliarem atribuições”, diz.


Há quem acredite que a Anatel é a agência mais indicada para regular o ambiente digital. Defensores apontam que a autarquia tem um corpo técnico qualificado, mais de 1.300 servidores e presença no país todo. A ANPD, por outro lado, ainda está no processo de ser transformada em agência por meio de uma medida provisória, e terá que fazer concursos para preencher vagas.


“Alemanha e Portugal designaram a agência de telecomunicações para aplicar a lei europeia de IA e a regulação de redes sociais”, diz Ricardo Campos, docente na Goethe Universität Frankfurt am Main, Alemanha. “Em lugar nenhum a agência de privacidade de dados é a reguladora.”


Dentro da Anatel, o entendimento é de que regular temas como IA e conteúdo na internet seria totalmente legítimo. Eles apontam para a determinação da Lei Geral de Telecomunicações de que o usuário de serviços de telecomunicações tem o dever de utilizar adequadamente as redes e à agência compete adotar as medidas para o atendimento do interesse público.


O entendimento de que a Anatel é responsável por atuar em casos de uso não adequado da rede de telecomunicações foi usado na decisão que deixou a cargo da agência a regulação de call centers, que sobrecarregam a rede de telecomunicações. Pelo raciocínio, o mesmo se aplicaria às big techs e data centers, que também sobrecarregam o sistema.

Conteúdo distribuído por Folhapress

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