Legislação

Bets deveriam ser proibidas para 65% dos brasileiros, diz Datafolha

Número aumenta para 78% quando a questão se restringe aos caça-níqueis online, como o jogo do Tigrinho
Bets deveriam ser proibidas para 65% dos brasileiros, diz Datafolha
Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil

São Paulo – Quase dois a cada três brasileiros com 18 anos ou mais defendem a proibição das apostas esportivas na internet, nos sites chamados de bets, mostra pesquisa Datafolha. O número sobe para 78% quando a questão se restringe aos caça-níqueis online, como o jogo do tigrinho, mantidos nos mesmos endereços da web.

Pouco mais de um quarto da população maior de idade (27%) é favorável à atual liberação das bets e 8% não opinaram. O resultado tem como base 1.935 entrevistas presenciais, realizadas em 113 municípios, de todas as regiões do país. A legalidade das apostas está em pauta, hoje, na Justiça.

A rejeição às bets é maior entre mulheres (68%) do que entre homens (61%). A faixa etária também altera a percepção dos brasileiros sobre as apostas esportivas. No grupo de entrevistados com idade de 18 a 24 anos, entre os quais o jogo é mais popular, 37% são contrários à proibição da prática, enquanto só 19% das pessoas com mais de 60 anos têm essa opinião.

A diferença entre evangélicos e católicos que se opõem às apostas fica dentro da margem de erro: 66% para os primeiros e 63% para os segundos.

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As apostas esportivas foram legalizadas por lei sancionada no último mês do governo de Michel Temer (MDB), em dezembro de 2018. Os caça-níqueis virtuais, por sua vez, foram incluídos no regramento brasileiro pelo Congresso em dezembro de 2023. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chancelou a regularidade dos jogos online por meio de portaria baixada em junho deste ano. A atividade regulada terá início no próximo dia 1º de janeiro.

Além de a maioria da população ser contra a liberação do jogo, 54% consideram que apostar é um vício e outros 30% dizem que é uma perda de dinheiro. Nos 15% que têm uma visão positiva sobre a prática, 9% afirmam que é uma diversão, enquanto 3% avaliam que é uma fonte de renda, e 2%, um investimento financeiro.

A liberação dos jogos e o vício estão associados, segundo o psiquiatra Rodrigo Machado, do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo), do Hospital das Clínicas. “Historicamente, observamos que a legalização e abertura de um mercado ao jogo do azar, quer seja presencial ou online, eleva a quantidade de indivíduos praticantes, expondo maior parcela da população a uma prática que pode gerar adoecimento em indivíduos vulneráveis.”

O Pro-Amjo deixou de aceitar novos pacientes em função da alta procura por pessoas adoecidas pelo jogo ainda no mês de agosto e, desde então, tem fila de espera.

Em relação à pesquisa anterior do Datafolha sobre o tema, feita em 5 de dezembro do ano passado, a parcela dos que dizem já ter apostado ficou estável: passou de 14% para 18%, dentro da margem de erro de dois pontos percentuais para cima ou para baixo em cada um dos percentuais. Também ficou estável a fatia dos que ainda fazem apostas online: oscilou de 8% para 6%.

Já a porcentagem de pessoas que dizem ter experimentado, mas parado de apostar subiu de 7% para 12%.

O gasto médio com apostas esportivas também caiu, no período, de R$ 268 para R$ 214. A mediana ficou em R$ 60, abaixo dos R$ 100 indicados pela nota técnica do Banco Central. O número de pessoas que diz perceber mais perdas do que ganhos, por sua vez, subiu de 52% para 59%.

Apesar da atenção recente às bets, ainda há mais brasileiros que jogam mais nas loterias da Caixa (29%) e Federal (12%), além do ilegal jogo do bicho (8%), do que em apostas esportivas (6%). Os caça-níqueis virtuais são a modalidade menos popular: 4% dizem apostar nesses jogos.

Entenda como ocorreu a legalização das bets

As apostas são permitidas no país desde dezembro de 2018, quando o governo Temer sancionou a lei que as legalizou. O texto alterava as fontes de receita do Fundo Nacional de Segurança Pública, incluindo nelas a receita de loterias e prognósticos esportivos.
A intenção de aumentar a arrecadação foi o principal vetor da articulação para permitir a atuação das bets no país, segundo advogados e especialistas em saúde mental ouvidos pela Folha de S.Paulo.

O texto indicava que o Ministério da Fazenda teria dois anos, prorrogáveis em igual período, para regulamentar as atividades das apostas esportivas. A gestão de Jair Bolsonaro (PL), contudo, estourou o prazo de 12 de dezembro de 2022 e se encerrou sem definir regras para o setor.

O atual governo e os principais grupos de pressão pela legalização das apostas online no país dizem que o período de cinco anos de legalidade sem regulação e supervisão acentuou o cenário de publicidade invasiva e jogo compulsivo sem tratamento adequado, pelo qual o país passa hoje.

Os sites ganharam o país com patrocínios a 15 dos 20 clubes de futebol da Série A, a competições esportivas, além de extensa publicidade via influenciadores nas redes sociais. Já ofertavam também modalidades então proibidas no país, como os caça-níqueis online, a exemplo do jogo do tigrinho. A lei de Temer permitia apenas prognósticos esportivos, não mencionando jogos baseados em chance.

Parte dos gestores das bets era brasileira, embora operasse em um mercado cinzento, ancorado em licenças e empresas sediadas em paraísos fiscais, como Malta, Curaçao, Gibraltar, Belize e Anjouan.

O atual processo de regulamentação teve início no governo Lula, com uma medida provisória de julho de 2023, que o Congresso substituiu por um projeto de lei. Os parlamentares aprovaram o novo texto em dezembro do mesmo ano e adicionaram a primeira menção aos jogos eletrônicos, por meio de emenda do deputado Bacelar (PV-BA). Advogados divergiam se a alteração bastava para permitir caça-níqueis ou não.

Em 29 de julho, a Fazenda sacramentou a legalização dos jogos de chance, como o do tigrinho, ao publicar uma portaria para determinar as condições para explorar a atividade.

“A regulamentação não cria um novo mercado, mas organiza e traz controle para uma atividade já existente”, diz a presidente do site Bet7K Talita Lacerda. “Sem regulamentação, o setor opera em um ambiente de insegurança para os consumidores, onde não há garantias de proteção, nem de transparência ou responsabilidade por parte dos operadores irregulares e ilegais.”

Liberação é contestada na Justiça

Sob o argumento de que os jogos online ameaçam a saúde pública e a economia popular, a CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal), em setembro deste ano, a inconstitucionalidade da regulação das apostas.

A Procuradoria-Geral da República também procurou a corte constitucional e contestou a validade da lei de 2018 que permitiu os prognósticos esportivos.

Em resposta à ação da CNC, o governo reconheceu, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), “os efeitos econômicos e sociais nocivos desproporcionais que podem tornar a atividade incompatível com os princípios constitucionais”.

“Caso as medidas protetivas implementadas a partir da vigência da lei nº 14.790 de 2023 e das portarias do Ministério da Fazenda não alcancem o efeito esperado de afastar a situação de inconstitucionalidade causada pelas apostas de quota fixa online, talvez não reste outra alternativa senão o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei nº 13.756 de 2018, que institui essa modalidade de loteria em nosso ordenamento jurídico”, afirmou o governo.
Em audiência pública realizada no último dia 12, o ministro Luiz Fux afirmou que levaria o mérito ao plenário no próximo ano.

Entre jogadores, 5% já venderam alguma coisa para apostar

“Eu não roubava, mas mentia e inventava desculpas para pedir dinheiro emprestado ou para vender coisas da loja da minha mãe, onde eu trabalhava”, disse Cléber, um dos apostadores abstêmios presentes em reunião dos Jogadores Anônimos na cidade de São Paulo.

A Folha usou um nome fictício em respeito ao pacto de anonimato adotado pelo grupo de ajuda mútua entre pessoas dependentes de apostas, que recebeu a reportagem. Na capital, o grupo se reúne em pontos na região central, em Santa Ifigênia e Luz, além da zona sul, em Santo Amaro e Jabaquara.

A situação de Cléber é compartilhada por outros pacientes diagnosticados com compulsão por jogo. Pesquisa Datafolha mostra que, entre as pessoas que já apostaram, 5% já venderam algum bem para jogar, 15% já pediram dinheiro emprestado e 22% usaram recursos que deveriam ser destinados ao pagamento de contas.

Outros 52% dizem nunca ter comprometido as finanças pessoais com a prática. O resultado tem base em 1.935 entrevistas presenciais, realizadas em 113 municípios, de todas as regiões do país. Desse grupo, 430 responderam apostar, o que faz a margem de erro para as questões abordadas nesta reportagem ser de cinco pontos percentuais, para cima ou para baixo.

Cléber só buscou ajuda quando um agiota o foi procurar, armado, para cobrar dívidas e se deparou apenas com a esposa do apostador. O devedor havia sido expulso de casa dias antes devido à dependência. Ele chegou ao grupo de apoio por incentivo de familiares.

Hoje, ele está há mais de um ano e meio sem apostar, embora tenha feito dívidas na faixa dos milhares de reais durante o período em que jogou.

Os próprios membros dos jogadores anônimos que falaram com a reportagem reconhecem que nem todo apostador é compulsivo. Em seguida, emendam que quem está em situação de jogo patológico causa estragos para toda a família.

Entre os apostadores questionados pela pesquisa Datafolha, 37% relatam algum mal-estar mental, sendo que 6% se autodeclaram dependentes e outros 2% dizem ter sofrido episódios de ideação suicida. A taxa epidemiológica de compulsão por apostas fica entre 1% e 2% em outros países do mundo.

A professora de psicologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maria Paula de Oliveira diz que uma pessoa que não apresenta todas as características de um quadro grave de dependência ainda pode se endividar e gerar problemas para a família. “Essa estatística de 1% a 2% é enganadora, na realidade vemos 20% das pessoas sendo afetadas direta ou indiretamente pelo jogo.”

O apostador em situação de dependência perde o controle de si. “Admitimos que éramos impotentes perante o jogo” é o primeiro passo de recuperação dos jogadores anônimos. Um dos alertas antes da reunião é não confessar crimes que ainda sejam juridicamente imputáveis.
“O destino do jogador é o desemprego e a solidão, a prisão ou a morte”, disse Juliano, outro jogador anônimo cujo nome original foi preservado. Ele vive a abstinência há 93 dias, depois de passar um período em internação.

Segundo Oliveira, que atua no programa ambulatorial de jogo patológico do Hospital das Clínicas, os ambulatórios do país fazem apenas atendimento. “A pessoa é internada quando passa por uma tentativa de suicídio ou procura uma daquelas chamadas comunidades terapêuticas [em geral, associada a grupos religiosos].”

A pesquisa Datafolha mostra que o gasto mediano dos jogadores, aquele aferido na metade da amostra estudada, representava R$ 60. O valor médio direcionado às bets, por sua vez, atingia os R$ 216. Essa diferença indica que os apostadores que gastam mais impulsionam o valor médio registrado -ou seja, os gastos entre as pessoas que mais apostam são bem acima dos R$ 216 declarados.

Em relação à pesquisa anterior do Datafolha sobre o tema, feita em 5 de dezembro do ano passado, o valor médio gasto por mês ficou caiu de R$ 263 para R$ 216.

O gasto médio com caça-níqueis, estimado pela primeira vez, fica em R$ 354, com mediana registrada em R$ 100.

O número de pessoas que diz perceber mais perdas do que ganhos, por sua vez, subiu de 52% para 59%, nas apostas esportivas. Entre quem gasta com cassinos online, 67% afirmam ter mais prejuízos.

Heitor, também com nome fictício, relata que percebeu os prejuízos que sofria ao migrar dos caça-níqueis físicos e jogo do bicho para os jogos online. “Eu via quando eu colocava uma nota de R$ 2 ou R$ 5 na máquina; no celular eu dava um giro de R$ 300 e nem sentia o dinheiro indo.”

Segundo ele, em uma viagem de ônibus do Jabaquara ao centro de São Paulo, os caça-níqueis virtuais lhe custavam de R$ 5.000 a R$ 6.000.

Dos entrevistados que costumam jogar em cassinos online, 23% declararam que o fazem todos os dias, e 26%, uma vez por semana.

A recorrência é menor entre quem faz apostas esportivas. Nesse grupo, 13% declararam jogar todos os dias, e 35%, uma vez por semana.

Cléber, no entanto, apostava só em esporte. “Comecei no futebol e no basquete, que eu acompanhava, mas aquilo deixou de bastar”, recorda. Atrás de mais resultados, o jogador, segundo o próprio depoimento, começou a chutar os resultados e os lances de partidas de tênis de mesa, modalidade conhecida pelo ritmo frenético. “Eu só queria continuar apostando”, diz.

Os relatos ouvidos pela reportagem, além dos jogos online, incluíam bingo, carteado, jogo do bicho e caça-níqueis. Na sala, havia duas mulheres, sendo que uma (também ex-jogadora) conduzia a reunião, e 13 homens.

Como identificar o jogo patológico

O Programa Ambulatorial do Jogo Patológico elaborou um teste para indicar o risco de dependência em apostas. Quem passou por ao menos quatro das nove situações listadas abaixo, nos últimos 12 meses, deve buscar ajuda.

– Necessidade de jogar com quantidades crescentes de dinheiro, a fim de obter a excitação desejada
– É agitado ou irritado quando tenta parar de jogar ou diminuir a frequência de jogo
– Tem feito repetidos esforços infrutíferos para controlar a ânsia de jogar
– Tem pensamentos persistentes de reviver experiências de jogo passadas ou, ao planejar a próxima aventura, pensa em maneiras de obter dinheiro para jogar
– Quando joga, sente-se angustiado (por exemplo, impotente, culpado, ansioso, deprimido)
– Depois de perder dinheiro no jogo, frequentemente volta às apostas para recuperar perdas
– Mente para esconder a extensão do envolvimento com jogos de azar
– Colocou em risco ou perdeu um relacionamento significativo, emprego ou oportunidade de educação ou carreira
– Depende de outros para prover dinheiro para sair de situação financeira causada pelo jogo

Onde buscar ajuda

Jogadores Anônimos do Brasil
Encontros para compartilhar experiências e ajudar outras pessoas a se recuperar de problemas de jogo. Há cidades que realizam reuniões semanais regulares
jogadoresanonimos.com.br

PRO-AMJO
Serviço do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP é voltado para estudar e tratar pacientes com transtorno do jogo
www.proamiti.com.br/transtornodojogo
(11) 2661-7805

Serviços de saúde
Procure uma UBS (Unidade Básica de Saúde) ou Caps (Centros de Atenção Psicossocial) mais próximos de sua residência para encaminhamento psicológico

Reportagem distribuída pela Folhapress

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