Fim de decisões definitivas gera insegurança jurídica

São Paulo – A quebra de decisões definitivas em temas tributários, estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na última quarta-feira, é temerária, gera insegurança jurídica e pode ter um efeito negativo no caixa de diversas empresas do Brasil, avaliam especialistas.
O Supremo determinou que casos tributários deliberados pela Corte prevalecem sobre decisões transitadas em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso) anteriormente, ou seja, “quebram” as sentenças que eram definitivas.
Na prática, isso significa que um contribuinte que tenha obtido uma decisão tributária favorável no passado, mas que posteriormente o Supremo tenha decidido de modo diferente, pode ser acionado pela Receita Federal sem necessidade de uma ação rescisória.
Como a maioria dos ministros (6 a 5) decidiu não aplicar a chamada modulação dos efeitos, empresas que antes estavam isentas não só voltarão a pagar o tributo a partir de agora, como poderão ser cobradas retroativamente.
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Com isso, julgamentos do STF com efeito vinculante -de repercussão geral e de controle concentrado de constitucionalidade- terão efeito imediato sobre sentenças anteriores.
As decisões precisarão respeitar, contudo, os princípios da anterioridade, que estabelece que aumentos de determinados tributos podem ser aplicados apenas no exercício seguinte ao da aprovação, e o da noventena -que determina um prazo de 90 dias para a cobrança.
O julgamento começou em 1º de fevereiro e foi encerrado na quarta-feira. De um lado, contribuintes argumentavam que os efeitos das decisões que haviam obtido na Justiça para não pagar tributos continuavam valendo mesmo após o Supremo declarar a cobrança dos tributos constitucional.
Do outro, havia o entendimento da União de que não há mais validade dessas decisões após novo julgamento da Corte.
Um dos recursos que chegaram ao STF foi ajuizado pela União contra uma indústria têxtil que conseguiu ordem judicial, transitada em julgado em 1992, para deixar de recolher (Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). A decisão havia sido tomada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). Em 2007, porém, o Supremo decidiu que esse tributo era constitucional, ao julgar uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI).
A CSLL é cobrada pela União e incide sobre o lucro líquido de empresas. A alíquota mais comum é de 9% sobre o valor, mas há casos em que a cobrança é ainda maior, a depender da atividade desempenhada. Para bancos, por exemplo, a alíquota é de 20%.
O tributo esteve no foco da decisão de quarta-feira, mas a cobrança pode valer para outros impostos que também passaram por mudanças de jurisprudência. Em 2020, por exemplo, ficou decidido pela constitucionalidade da cobrança de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na revenda de produtos importados. O mesmo ocorreu em 2008, em relação a exigência de Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins)
Ponto de conflito
Carolina Romanini, sócia do Cescon Barrieu na área tributária, a decisão do Supremo como preocupante. Ela lembra que o artigo 5º da Constituição estabelece que a lei não deve prejudicar a coisa julgada, o que pode ser um potencial ponto de conflito.
A especialista entende que o mérito da decisão é justa, pois pode corrigir distorções entre empresas isentas de impostos e outras que precisam pagar. “Compromete-se a livre concorrência, a igualdade. Esses foram os princípios considerados pelo STF para julgar dessa forma”, alerta
O problema, segundo ela, é permitir cobranças retroativas. “Isso prejudica muito as empresas. Imagina uma subsidiária ter que explicar para a matriz estrangeira que vai precisar pagar um tributo sendo que havia uma decisão (de isenção) antes. Não tem segurança jurídica.”.
Carolina Romanini afirma que são muitos os casos de companhias que tiveram o direito de não recolher CSLL reconhecido e que agora terão que pagar o tributo referente a cinco anos anteriores, pelo menos. O prazo que ela menciona diz respeito a uma trava legal que impede que a Receita Federal faça cobranças para além dos últimos cinco anos.
A legislação prevê que as partes envolvidas no processo entrem com embargos de declaração, que é um instrumento para quando há dúvida, erro, contradição ou obscuridade na decisão. O recurso pode ser interposto no prazo de cinco dias.
David Andrade Silva, tributarista e sócio do Andrade Silva Advogados, diz que eventuais embargos podem modificar a decisão do Supremo, mas é algo raro. “Só quando há uma contradição muito grande no julgado, que inspiraria a alteração de um dos votos. Diria que é quase impossível essa decisão ser modificada”, afirma Silva, acrescentando que, historicamente, o Supremo não reforma decisão em função de embargos de declaração.
Carolina Romanini também acha difícil haver mudanças. Ela ainda lembra que no caso da tese do século (julgamento sobre o ICMS na base do PIS/Cofins), os embargos foram opostos em 2017 e julgados apenas em maio de 2021.
“Dificilmente há mudança de entendimento, mas alguma correção ou esclarecimento pode melhorar em algum aspecto o julgamento, talvez com relação à produção dos efeitos para o passado, que é flagrantemente retroativa e compromete a segurança jurídica e o princípio da irretroatividade”, afirma.
A advogada ainda teme que o Supremo possa fazer isso com outras questões, não apenas em assuntos tributários. “Esse é o perigo do julgamento. Estamos falando de mudar o passado”, diz.
É o que também preocupa Silva. «Na prática, a coisa julgada vai ficar sempre sob interrogação. Eu tenho uma decisão transitada em julgado, mas eu não sei se aquele tema vai ser ou não referendado pelo Supremo”, diz. “É uma coisa estarrecedora, de certa forma até preocupante. Recriaram o Direito”, acrescenta.
Ele diz que a decisão versa sobre a temática tributária apenas, mas a argumentação pode transbordar para além dessa matéria. “O tema foi dado numa questão envolvendo a CSLL, mas eu me preocupo com a intenção desse entendimento”, afirma.
No caso da CSLL, Silva diz que o impacto pode ser alto, visto que muitas empresas se valiam de decisão transitada em julgado para não pagar o tributo. Segundo ele, algumas provisionavam bilhões de reais em isenção no balanço financeiro.
Jordão Oliveira, advogado tributarista no escritório Zilveti Advogados, também diz que a não-modulação gera uma grande insegurança jurídica. “É o risco Brasil. Como uma empresa que ganhou uma ação judicial reporta isso para a matriz?”, questiona.
Para ele, a decisão é preocupante para todos os contribuintes. “Aquilo que aprendemos na faculdade, de que a coisa julgada não pode ser alterada, exceto por uma ação rescisória específica, o STF acabou colocando uma pedra em cima”, ressalta. (Thiago Bethônico e José Marques/Folhapress)
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