IDEIAS | O revés do preconceito
A obstinação em se fazer cumprir a lei pode estar refratando a oportunidade de trazer à luz do debate um importante dilema étnico no Brasil. Um jovem capixaba, com pouco mais de 30 anos, que se autodeclara pardo, foi aprovado – em todas as etapas – em um concurso público para novos juízes, promovido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).
Tarcísio Francisco Regiani Junior candidatou-se a uma das dez cotas reservadas para pardos e pretos, das quais somente cinco foram preenchidas face aos filtros das provas. Ele foi considerado pardo, tanto pela avaliação (prévia) de uma comissão do próprio TJRJ – que julga o pleito dos candidatos quanto às cotas- quanto por uma comissão equivalente no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que também o considerou pardo durante os exames em um concurso naquela instituição.
Inclusive, em sua trajetória existencial, Tarcísio sofreu bullying nas escolas em que estudou, dadas as suas características físicas. Na página do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – educa.ibge.gov.br – consta o texto: “O IBGE pesquisa a cor ou raça da população brasileira com base na autodeclaração. Ou seja, as pessoas são perguntadas sobre sua cor de acordo com as seguintes opções: branca, preta, parda, indígena ou amarela.
”Nos preceitos da Constituição Federal também não constam restrições a esse respeito. Especialistas que atuam em repartições de identificação no Brasil convergem quanto à subjetividade do tema e recomendam que se considere o ‘senso de pertencimento’ do indivíduo como decisivo. A ‘cor da pele’ percebida, por exemplo, durante uma perícia da Polícia Civil, em tempo da emissão da Carteira de Identidade, pode não corresponder à etnia à qual apessoa ‘se sente’ pertencente e com a qual ela se identifica. Complexidades antropológicas e socioculturais à parte, Tarcísio, após ter sido aprovado pelo TJRJ – incluindo a prova oral, na etapa final – teve sua posse suspensa por uma decisão liminar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que acolheu a denúncia feita pela Associação Nacional da Advocacia Negra (Anan), entidade racial composta por indivíduos pretos.
Foi escalada nova comissão de julgamento étnico, ignorando a análise da comissão do próprio TJRJ. Por decisão do CNJ, compôs-se uma comissão externa ao TJRJ, formada, exclusivamente, por indivíduos de cor preta, a qual julgou o candidato – pardo – inapto, etnicamente, para a respectiva cota. Reafirmando que o mesmo candidato fora também considerado pardo pela comissão do TJSP. Um perfil genérico (não especializado) de rede social havia jogado a questão no ventilador com base em denúncia semelhante e usando fotos e informações retiradas do perfil da mãe do candidato na internet, sem ouvir o próprio. Isso foi compartilhado com cerca de cem mil “seguidores”.
Infelizmente, esse material acabou incluído nos autos do processo jurídico que se originou contra Tarcísio. O influenciador digital Adalberto Neto (perfil oadalbertoneto, no Instagram) – responsável legal pelo canal- fez, inclusive, referência à palavra fraude. O vídeo trazia aludindo, adicionalmente, a uma situação econômica privilegiada por parte do rapaz, graças à condição de filho de empresários, que ele não é.
Tarcísio vem de uma comunidade modesta e industrial da cidade de Vila Velha, no ES, sendo seu pai um contador autônomo e sua mãe dona de casa, com origem social desconhecida por ter sido abandonada em uma caixa de sapatos deixada na rua, por sorte encontrada por sua mãe adotiva. Tarcísio, aprovado legalmente no concurso para juízes, é servidor público no ES e precisou fazer um empréstimo financeiro para que pudesse levar sua família – pais incluídos – para participar da cerimônia de posse.
O mesmo montante também seria usado para que ele se mantivesse no Rio, de modo a fazer o curso de formação para novos juízes, em sequência à posse. O dinheiro do empréstimo também pagou o primeiro aluguel do apartamento em que ele ficaria para seguir sua carreira como magistrado no estado do Rio de Janeiro. Nada disso aconteceu. Ele e sua família, tomados pela frustração, retornaram ao ES. Além disso, ocorreu uma ampla exposição negativa na imprensa, que, igualmente, não o ouviu na apuração das matérias. Mesmo não sendo rico e sentindo-se pardo, teria Tarcísio sido vítima de racismo econômico e de preconceito racial reverso?
Quais as raízes dessa sucessão de mal entendidos? Redes sociais e “influenciadores digitais” podem derivar provas e serem fontes para a imprensa sem uma análise jurídica conclusiva, sem que o lado- mais afetado – seja ouvido? Talvez esse dilema exija coragem diante da pressão que movimentos obtusos, dentro e fora das redes sociais, possam causar. Estes podem estar ajudando a escoar por ralos midiáticos – ou quem sabe políticos? – o bom senso e a oportunidade de se definir uma metodologia a contento, que proponha critérios consistentes para a questão das cotas, sem perder de vista abordagens mais sistêmicas da condição humana e acepções mais amplas da palavra justiça.
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