Registro de tokens é suspenso pela Justiça
São Paulo – A tentativa de transformar imóveis em frações digitais negociáveis – a chamada tokenização imobiliária- enfrenta um impasse jurídico no Brasil. A Justiça Federal suspendeu a resolução que criava um “sistema paralelo” de registro de tokens imobiliários, deixando o mercado em compasso de espera e revelando o vácuo regulatório que cerca o tema.
A decisão, de 13 de outubro, acatou pedido do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR) contra o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (Cofeci), que havia lançado o chamado Sistema de Transações Imobiliárias Digitais (STID). Para o juiz Francisco Valle Brum, o Cofeci invadiu competência da União e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao tentar criar um regime próprio de registro de imóveis digitais.
Na prática, a suspensão impede que corretores usem a norma para emitir e negociar tokens de propriedades, o que vinha sendo apresentado pelo conselho como um passo rumo ao “futuro do mercado imobiliário” brasileiro. A disputa opõe fintechs e corretores a registradores e reguladores, e reacende o debate sobre quem pode garantir a validade de um imóvel digitalizado – e o que, afinal, representa um token imobiliário.
A tokenização é o processo de transformar um ativo físico em uma representação digital na blockchain, uma espécie de livro contábil público e inviolável. No caso dos imóveis, o token funciona como uma fração do bem: o investidor compra uma parte, por exemplo, 20% de uma casa de R$ 600 mil, pagando R$ 120 mil. A operação é feita em plataformas digitais, que administram os direitos e eventuais rendimentos.
O modelo é vendido como forma de democratizar o investimento imobiliário, permitindo que pessoas físicas invistam em propriedades sem a burocracia tradicional e com valores menores. Em algumas plataformas, os compradores podem inclusive receber aluguéis proporcionais à fração adquirida.
Mas o que parece simples esbarra em um problema jurídico: o token não é, por si só, o registro de propriedade. Pela lei brasileira, só o cartório tem fé pública para reconhecer a titularidade de um imóvel.
“O token pode representar um direito, mas não substitui o registro imobiliário. Sem integração com o sistema oficial, o investidor corre o risco de ficar com um ativo digital sem correspondência no mundo real”, afirma o presidente do ONR, Juan Pablo Correia Gossweiler.
Parara o órgão, a tecnologia pode trazer ganhos de eficiência e transparência, desde que ancorada no sistema registral oficial. “A inovação precisa fortalecer o sistema, não substituí-lo”, diz Gossweiler.
Regulamentação
A expectativa é que o CNJ avance em uma proposta de regulamentação conjunta com o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que já supervisiona tokens de valores mobiliários. A ideia é construir um marco legal único, integrando a tecnologia ao sistema de registros e à política de prevenção à lavagem de dinheiro.
“A tecnologia é bem-vinda, mas precisa operar dentro das regras do sistema registral”, diz Gossweiler. “O que não dá é criar um mercado paralelo sem segurança jurídica”, ressalta.
Enquanto o novo marco não vem, especialistas apontam que o ambiente atual é inseguro e carente de regras claras, expondo os investidores a riscos altos.
Gossweiler diz que a confusão entre token e título de propriedade alimenta uma falsa sensação de segurança entre investidores. Para advogados especialistas em direito imobiliário, qualquer transação feita fora do sistema oficial de registros pode ser considerada nula ou contestada judicialmente.
Marcelo Tapai afirma que quem compra um token adquire apenas uma fração digital do ativo, sem ser dono do imóvel. Ele diz que se a empresa que detém o bem desaparecer ou vendê-lo, o token perde o lastro e o investidor fica com um pedaço de código que não representa mais nada. Em caso de fraude, a dúvida é preocupante: vai cobrar de quem?
Outra questão é a venda de tokens de direitos obrigacionais, como o recebimento de aluguéis, apresentados como se fossem cotas de propriedade. Isso gera confusão e pode levar o consumidor a investir em algo que não é o que parece ser.
A operação fora do sistema de registros também abre brecha para crimes financeiros, segundo Tapai e Gossweiler. Sem o controle de cartórios e do sistema bancário, as transações perdem rastreabilidade e podem ser usadas para lavagem de dinheiro ou sonegação fiscal. Se o imóvel tokenizado for irregular ou não tiver matrícula, o token representa apenas a posse, não a propriedade. Ou seja, o comprador não tem nada do ponto de vista legal.
O mercado imobiliário é tradicionalmente suscetível à lavagem de dinheiro e ocultação de valores.
Os cartórios já são obrigados a comunicar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) transações que indiquem anomalias, como imóveis vendidos muito abaixo da avaliação de mercado ou negociados rapidamente.
Reportagem distribuída pela Folhapress
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