Movimento Minas 2032

Adultização de crianças e adolescentes impacta mau desempenho de cumprimento de metas dos ODS

Relatório Luz é a pesquisa que monitora o cumprimento dos ODS no Brasil
Adultização de crianças e adolescentes impacta mau desempenho de cumprimento de metas dos ODS
Foto: Reprodução Freepik

A adultização de crianças e adolescentes – cultura de incentivo a comportamentos, responsabilidades ou imagens que não correspondem à idade, em ambiente digital ou não – está relacionada ao mau desempenho das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), revela a cofundadora da Gestos e coordenadora do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), editora do Relatório Luz, Alessandra Nilo. O Relatório Luz é a pesquisa que monitora o cumprimento dos ODS no Brasil.

Para ela, o assunto, que não é novidade, ganhou espaço nos jornais e redes sociais no último mês, após denúncia do influenciador Felca, que viralizou um vídeo sobre o tema. Segundo a especialista, o debate pode favorecer a sociedade e o governo, pois evidencia os desafios do compromisso com crianças e adolescentes por parte da gestão pública, do parlamento e das famílias.

Ainda de acordo com a coordenadora do GT, o último Relatório Luz sobre a Agenda 2030 expôs um cenário alarmante: metas diretamente ligadas à proteção da infância, como o ODS 16.2 (acabar com abuso, exploração e tráfico de crianças), o ODS 4.7 (assegurar educação inclusiva e de qualidade); o ODS 5.2 (eliminar todas as formas de violência contra mulheres e meninas) e o ODS 8.7 (erradicar trabalho infantil) apresentam resultados muito aquém do necessário para seu cumprimento até 2030.

“A adultização denunciada por Felca se conecta ao descuido de toda a sociedade com a infância e adolescência. Permitir acesso precoce a conteúdos, comportamentos e responsabilidades próprios da vida adulta, muitas vezes amplificados pela internet e redes sociais, facilita e normaliza a vulnerabilidade a abusos, exploração e evasão escolar, comprometendo diretamente o alcance dessas metas e exigindo respostas urgentes e coordenadas entre governos, sociedade civil e setor privado”, afirma Alessandra Nilo.

A especialista destaca que a meta 16.2 – que prevê acabar com abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência contra crianças – está em retrocesso. Foram registradas 71.867 ocorrências de exploração e abuso infantil na internet em 2023, além de 1,3 milhão de violações de direitos de crianças e adolescentes.

O problema ainda não é reconhecido por parte da sociedade, explica a cientista social, doutora em Sociologia e professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Andreia dos Santos. “Estamos assistindo a uma naturalização perigosa da exposição infantil, muitas vezes mascarada como diversão ou empreendedorismo digital. Isso fere diretamente não só o direito ao desenvolvimento saudável, mas também compromete as metas globais que o Brasil assumiu cumprir até 2030”, alerta.

Quando o virtual “acelera” a vida infantil

Em um bairro de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Luísa (nome fictício), 12 anos, já tem 200 mil seguidores no TikTok. Os vídeos mais populares são coreografias sensuais inspiradas em artistas adultos. A mãe, desempregada, admite que o canal é hoje a principal fonte de renda da família, graças a parcerias publicitárias.

“Muita gente que critica, mas aqui em casa o dinheiro que vem do canal é o que paga o mercado e a internet. Eu ajudo a produzir e não acho que seja ruim porque é o que ela gosta de fazer já que sonha ser mundialmente famosa”, diz R.T.X, 25 anos, mãe de Luísa.

Para a doutora em Sociologia Andreia dos Santos, casos como o de Luísa ilustram o cruzamento entre trabalho infantil digital, hipersexualização e ausência de regulação, o que torna a prática uma facilitadora da adultização e de crimes contra crianças e adolescentes.

A coordenadora do GT Alessandra Nilo completa que o Relatório Luz aponta três fatores que emperram o avanço: orçamento insuficiente para políticas de proteção à infância — embora tenha havido aumento no governo Lula; falta de regulação específica para conteúdo digital envolvendo menores e para a economia de influência infantil e a baixa integração intersetorial entre governos, empresas de tecnologia, escolas e famílias.

Lacunas regulatórias

Em relação às questões de direito digital e implicações das plataformas que veiculam esses conteúdos, o advogado e professor de Direito e integante do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD) e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (Iberc), José Faleiros Júnior, reforça que lei pode e deve ajudar. O especialista contextualiza que a adultização é facilitada legalmente por lacunas regulatórias no ambiente digital, ausência de fiscalização específica e pela dificuldade de aplicar normas tradicionais de proteção da infância às novas formas de exposição virtual.

Faleiros pondera que soluções como a criação de um marco normativo próprio para influenciadores mirins e conteúdos infantis em plataformas digitais; educação digital nas escolas, alfabetização midiática e orientação sobre direitos on-line para pais, educadores, crianças e adolescentes; regulação da monetização de perfis infantis; design seguro por padrão nas redes; contas privadas automáticas; restrição de mensagens diretas; filtros contra termos sensíveis; além da exigência de autorização judicial, transparência das plataformas e restrição de publicidade podem acelerar o combate à adultização e ajudar o Brasil a proteger crianças e adolescentes, cumprindo metas da ONU.

José Faleiros Júnior
Faleiros: adultização facilitada por lacunas regulatórias | Foto: Arquivo pessoal / José Faleiros

O advogado defende ainda que, sem uma ação coordenada e imediata, o Brasil corre o risco de não apenas falhar no cumprimento das metas da ONU, mas também consolidar um cenário em que a infância se perde diante das telas. “Quando uma criança é tratada como adulto para gerar lucro, todos perdemos. Para que o mundo digital não seja mais um ambiente propício para a prática de crimes e abusos contra públicos vulneráveis, é fundamental que haja entendimento e cooperação entre governo, empresas, sociedade civil e organismos internacionais para monitoramento e financiamento de ações. O letramento digital deve receber investimentos e ser considerado política pública de cibersegurança, saúde e respeito de toda a sociedade brasileira”, finaliza.

R.T.X disse que assistiu ao vídeo de Felca, mas não vê motivos para proibir a filha de fazer as danças virtuais. Questionada sobre o apelo sexual do conteúdo, a mãe disse que faz parte da cultura dos adolescentes. “Funk, novela e séries mostram isso e não é a dança da minha filha, que traz dinheiro para casa, o problema para proteger as crianças do Brasil”, reflete.

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