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Recuperação judicial ainda é estigma para empresas

Má gestão e investimentos ruins, dentre outros fatores, levaram 1.400 empresas a entrarem com o pedido em 2023, segundo projeções da EXM Partners
Recuperação judicial ainda é estigma para empresas
Crédito: REUTERS/Ricardo Moraes

São Paulo – O número de pedidos de recuperação judicial de empresas subiu em 2023 quase 73% na comparação com 2022, após dois anos em queda, segundo projeções da EXM Partners com base em dados da Serasa Experian.

Apesar do aumento no volume na comparação com o ano anterior, o ano passado teve um número de processos próximo à média dos anos que antecederam a crise da Covid-19.

Ainda assim, o tema recebeu maior atenção, puxado pelos processos de grandes companhias como Americanas, Oi (que fez o segundo pedido em seis anos), Light, Petrópolis e Southrock, que foram à Justiça pedir autorização para reorganizar a casa sem que seus credores executassem suas dívidas.

Outras, como Marisa, TokStok e Amaro, adotaram medidas como reestruturação, as duas primeiras, e recuperação extrajudicial, a segunda. A fábrica de chocolates Pan e a Saraiva pediram autofalência e a Livraria Cultura precisou recorrer às instâncias judiciais superiores para suspender sua falência.

Nos anos de pandemia, os juros estavam baixos, o governo pagou benefícios que estimularam o consumo, deu incentivos a setores e as instituições de crédito postergaram prazos. Em 2023, a ressaca veio forte.

Os juros básicos bateram 13,75% já no fim do ano anterior, o consumo estava retraído, as contas começaram a vencer e apesar do fim tácito da pandemia, não houve movimento de retomada das atividades.

A projeção da EXM Partners, consultoria especializada em recuperação judicial e reestruturação, é a de que 2023 tenha fechado com ao menos 1.400 pedidos. De janeiro a novembro, último dado disponível, foram 1.303 processos encaminhados à Justiça.

O penúltimo mês do ano concentrou o volume de solicitações, foram 175, a maioria delas no setor de serviços (112) e enquadrada como micro e pequena empresa (137). Luiz Rabi, economista da Serasa, diz que apesar da melhora na inadimplência das empresas (com o recuo da Selic), o cenário de recuperações judiciais tem reagido em ritmo mais lento.

Para Angelo Guerra Netto, sócio da consultoria, o crescimento em 2023 leva a situação para os níveis registrados antes da pandemia, ou uma certa normalidade. “O que cresceu foi [a presença] de grandes empresas. O resultado geral é o de volta às bases históricas registradas de 2015 a 2019”, afirma.

Ainda que os cenários domésticos e macroeconômicos interfiram, o que leva empresas ao pedido de RJ é, quase sempre, má gestão, diz Guerra -ex-PWC, ele trabalha há 20 anos como auditor independente e desde 2007 com reestruturação e recuperação judicial.

Segundo o executivo, as falhas vão de investimentos em ativos ruins e imobilização de capital a dificuldades com a modernização dos processos produtivos. Mesmo casos cujo gatilho foi outro, o fim da linha será a gestão indevida.

É o caso da Samarco, mineradora responsável pela barragem de contenção de rejeitos em Bento Rodrigues, e que ficou conhecido como desastre ambiental de Mariana, em Minas Gerais, ocorrido em 2015. Em 2023, a mineradora, uma associação entre Vale e BHP Biliton, fechou acordo com seus credores.

Para essa empresa, falhas na gestão não afetaram o caixa, mas a crise de imagem que se seguiu do desastre (esse sim decorrente de problemas da administração) acabou levando a companhia ao colapso.

Para Ana Beatriz Moroni, sócia-líder da área de reestruturação da Deloitte, o Brasil ainda tem um volume grande de empresas familiares, onde acaba prevalecendo certo negacionismo da situação financeira, até que seja tarde demais.

As empresas evitam buscar mecanismos como reestruturação e recuperação pelo potencial dano à imagem da companhia. O que podia ser uma reestruturação, vira uma recuperação, e uma RJ pode virar uma falência.

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria -a empresa está prestando serviços para Americanas atualmente- considera que, no caso da varejista “ninguém pode negar que a reputação fica abalada”.

Por isso, Maílson considera que há muito interesse na recuperação da empresa. “Não vai ser no próximo ano que as Americanas estarão recuperadas. É um processo gradual de restabelecer a confiança com os fornecedores integralmente.”

Ele avalia que a recuperação da Americanas é importante também para que o mercado de crédito se reestabeleça e retorne ao nível de oferta anterior à crise.

Segundo pesquisa da Delloite divulgada em dezembro, empresários, juízes e advogados consideram que processos de insolvência ainda são associados a uma imagem negativa, de uma empresa prestes a fechar as portas sem pagar o que deve.

Não é bem assim, mas também não quer dizer que os credores passem ilesos pelos processos. Quando o pedido de RJ é aceito, a empresa consegue suspender suas obrigações com credores e consumidores por 180 dias.

O prazo é usado para o levantamento e classificação dos credores e a construção do plano de recuperação judicial, no qual são definidos os parâmetros de pagamento das dívidas e o deságio, ou seja, o desconto sobre o valor atualizado.

Breno Miranda, do Ibajud (Instituto Brasileiro de Solvência), diz que o sistema vem evoluindo desde 2005, quando a primeira versão da lei de falências e recuperações judiciais foi publicada. Até então, as concordatas, como eram chamadas as falências, eram reguladas por decretos.

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Crédito: Alisson J. Silva/Diário do Comércio

Na avaliação dele, ainda que exista uso indevido da recuperação judicial, aprimoramentos da legislação ajuda a afunilar os casos, como a criação da constatação prévia, que entrou em vigor no fim de 2020. Essa perícia é feita antes de o juiz decidir se o processo de RJ tem ou não condições de seguir.

O perito informa ao juiz se a empresa existe, se está em atividade, qual o tamanho do grupo empresarial. Foi o que aconteceu no caso da Southrock, controladora da Starbucks no Brasil.

Para Angelo Guerra, da EXM, a constatação prévia vem fazendo com que o nível dos processos suba.

“Com isso, o pedido de recuperação judicial já não tem mais o objetivo de apenas atrasar a falência, há um filtro na largada.”

O filtro reduziu o número de deferimentos, que deixam de ser quase automáticos, mas a tendência é que aumente o número de processos encerrados com o soerguimento da companhia. Apesar do desgaste de imagem da recuperação judicial, são comuns os casos em que a empresa segue funcionando até que o processo seja encerrado -é o que aconteceu com Viracopos, por exemplo.

Outra mudança recente que melhorou o andamento desses processos foi a criação das varas especializadas. Em 2019, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou uma recomendação para que os tribunais de justiça criassem câmaras ou turmas especializadas em falência, recuperação judicial e outros temas ligados ao direito empresarial.

A criação dessas varas mudou o panorama de processamento dos pedidos de recuperação e de falência, tornando-os mais céleres, especialmente os apresentados em comarcas do interior dos estados, onde o mesmo juiz acumula casos dos mais diversos assuntos.

Segundo o CNJ, somente oito estados brasileiros têm varas especializadas: Ceará, São Paulo, Tocantins, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo. Juntos, esses tribunais têm 20 varas dedicadas a falências e RJs.

Falências ‘sem fim’ devem ficar menos comuns

Casos longínquos de falência, alguns sem qualquer movimentação processual por anos, devem começar a ficar mais raros. Na pesquisa da Deloitte sobre as impressões do mercado quanto ao atual cenário de falências, os entrevistados relataram otimismo quanto a maior celeridade dos processos.

Ana Beatriz Moroni, sócia-líder da área de reestruturação da consultoria, diz que há hoje maior preocupação em acelerar o processo de liquidação. A falência recente da fábrica de chocolates Pan é um caso de tipo. Foram sete meses entre a decretação da falência e o primeiro leilão de bens da companhia.

O governo federal quer que a duração dos processos caia pela metade. Projeto de lei enviado ao Congresso na quarta (10) altera a lei para que os credores possam indicar um administrador judicial e para acelerar o pagamento de créditos trabalhistas mesmo quando houver disputa entre as prioridades. (Fernanda Brigatti)

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