Uso e fabricação do plástico em xeque

Ele está por aí: seja na forma de grandes montanhas ou de micropartículas inaláveis. Bem na sua frente vários objetos devem ter partes desse material. No dia a dia ele está presente da cabeça aos pés: do calçado ao grampo de cabelo, suportando o peso das compras e protegendo os circuitos eletrônicos dos aparelhos que tornam (ou nem sempre) a vida moderna mais cômoda. Ele é o plástico!
Material derivado do petróleo, o plástico promoveu uma revolução no modo de vida do planeta a partir da II Guerra Mundial, com o surgimento do PVC. Leve e barato, o polímero se presta às mais diferentes funções e aplicações. Por não ser biodegradável hoje é, também, um grave problema ambiental, especialmente o chamado “plástico de uso único”, aqueles descartáveis.
A gravidade da situação chegou a tal ponto que a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, em março, um acordo histórico para criar o primeiro tratado global de poluição por plástico, descrevendo-o como o pacto ambiental mais significativo desde o Acordo Climático de Paris, em 2015.
Autoridades de 175 países, incluindo o Brasil, comemoraram a adoção de uma resolução para criar um tratado legalmente vinculante sobre poluição por plástico, que deve ser finalizado até 2024.
A ONU estima que uma mudança significativa para uma economia circular poderá reduzir o volume de plásticos que entram nos oceanos em mais de 80% até 2040, reduzir a produção de plástico virgem em 55%; poupar 70 trilhões de dólares aos governos; reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 25% e criar 700 mil empregos adicionais nesse mesmo prazo.
Isso mostra que a revisão sobre o uso e a fabricação do plástico pode gerar uma nova cadeia produtiva baseada na chamada “economia regenerativa”. A tríade “Redução, Reúso e Reciclagem” forma os 3Rs da sustentabilidade, um conceito já bastante popular. E essa é uma das verticais dos novos negócios que estão surgindo a partir da busca por mitigação do uso do plástico. A outra vertical são os novos materiais.
Candidato natural ao protagonismo em uma economia global mais verde, o Brasil conta com uma adesão já significativa da população quanto à diminuição do uso do plástico. Em uma pesquisa realizada pela consultoria Ipsos, em parceria com o movimento Plastic Free July, o Brasil – entre os 28 países que integram o levantamento – foi o que registrou maior apoio a essas práticas, empatando com China, Grã-Bretanha e México – todos com 90%. Os menores índices foram identificados entre os entrevistados no Japão (72%), Arábia Saudita (79%), Coreia do Sul (79%) e Rússia (79%). A média global é de 85%.
A maioria dos consumidores em todos os países pesquisados prefere produtos que utilizam a menor quantidade de embalagens plásticas possível, sendo os entrevistados da China (92%), México (92%) e Colômbia (92%) os que mais concordam com a afirmação. O Brasil ficou em 6º lugar, com apoio de 86% dos respondentes, acima da média global (82%).
Em média, 88% das pessoas ouvidas acreditam que é essencial, muito importante ou bastante importante haver um tratado internacional para combater a poluição por plástico. Entre os brasileiros, o nível de apoio à medida é ainda maior: 92%.
Proveito racional pode trazer benefícios para o Brasil
Apontada como solução para conciliar desenvolvimento econômico e responsabilidade socioambiental, a economia regenerativa é o sistema que deseja substituir a lógica de exploração de matérias-primas, produção e consumo, por uma lógica circular que se preocupa com o propósito e o processo de busca de matérias-primas, produção, consumo reutilização, reaproveitamento, reciclagem e descarte final do produto. Ela propõe a tomada de decisões que atendam às necessidades das pessoas sem degenerar os sistemas naturais, com orientação de longo prazo, com o propósito de combater as desigualdades sociais e conservar a biodiversidade. O conceito permeia as discussões sobre a necessidade de diminuição do uso e fabricação do plástico.
Segundo o Atlas do Plástico 2020, publicado pela Fundação Heinrich Böll Stiftung, só no Brasil foram mais de 11 milhões de toneladas de plástico jogadas fora, o que colocou o País como quarto maior produtor de lixo plástico no mundo, naquele ano.
“Grande parte do lixo vai parar em aterros sanitários ou é incinerado, gerando mais poluição e contribuindo para o aquecimento global. Os investimentos em reciclagem não são suficientes. Isso faz com que atores como os catadores de materiais recicláveis, por muitos invisibilizados, se tornem linha de frente da guerra contra o plástico e contra a Covid-19, pois são cada vez mais vulneráveis nessa cadeia do descarte instantâneo e contaminado”, aponta o relatório.
Segundo o professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC), Fábio Carneiro, o plástico é visto como barato porque é altamente eficiente e jogá-lo fora após um só uso é o mesmo que rasgar dinheiro.
“A forma como o tratamos é absurda porque é jogar fora energia que vale dinheiro. O plástico é visto como mais barato, mas, na verdade, ele é mais eficiente. O mundo da matéria se contabiliza pelo peso. O peso da sacolinha é muito inferior ao que ela é capaz de carregar. O uso racional do plástico pode trazer benefícios astronômicos para o Brasil. Temos uma quantidade de coletores que a indústria não sabe bem como caracterizar e apoiar. Temos que incluir esse grupo de pessoas em uma cadeia produtiva de uma indústria que é altamente tecnológica do ponto de vista da segurança e do meio ambiente”, explica Carneiro.
Para o diretor do Núcleo de Sustentabilidade e professor da FDC, Heiko Hosomi Spitzeck, é preciso dar viabilidade econômica aos projetos e aproveitar a onda de “capital verde” disponível no mundo pós-pandemia e a necessidade de diversificação das fontes de energia evidenciada pela crise gerada pelo conflito entre Rússia e Ucrânia.
“Vejo a Europa querendo reduzir a dependência da energia da Rússia, investindo mais em energia renovável. Se quero independência do petróleo, de onde mais consigo tirar matéria- prima para gerar energia? Os plásticos são uma saída, mas para isso é preciso ter volume de coleta. Vejo num futuro próximo as companhias de energia comprando aterros para minerar matérias-primas, principalmente os plásticos, mas é preciso educação ambiental para que isso se concretize o mais rápido possível. O capital já está circulando à procura dos melhores projetos”, pontua Spitzeck.
Exemplos
Entre 1950 e 2017, um total de 9,2 bilhões de toneladas de plástico foram produzidas. Isso representa mais de uma tonelada por cada pessoa que vive hoje em dia no planeta Terra. A maior parte consiste em produtos e embalagens de uso único. Menos de 10% de todo o plástico já produzido foi reciclado.
E bons exemplos já existem no Brasil. O programa de reciclagem do alumínio é um “case” mundial, com índices que ultrapassam a marca de 98%. Mas a cadeia produtiva do plástico também tem um “case de sucesso planetário” para chamar de seu: a reciclagem das embalagens de insumos agrícolas.
Pode parecer incrível que em um país das dimensões do Brasil, com as dificuldades de deslocamento já conhecidas e a ausência de uma educação ambiental mais robusta, 94% das embalagens plásticas de insumos agrícolas colocadas no mercado sejam recolhidas, tratadas, recicladas e que desse total, 93% voltem a ser embalagens perfeitas, atendendo todas as normas técnicas de segurança e usabilidade. Tudo isso acontece por meio do Sistema Campo Limpo (SCL), que é o programa brasileiro de logística reversa de embalagens vazias e sobras pós-consumo de defensivos agrícolas, gerido pelo Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (inpEV).
O projeto tem como base o princípio das responsabilidades compartilhadas entre todos os elos da cadeia produtiva (agricultores, fabricantes e canais de distribuição, com apoio do poder público) para realizar a logística reversa de embalagens vazias de defensivos agrícolas. Mais de 260 associações de revendas e cooperativas fazem parte do SCL, e mais de 1,8 milhão de propriedades agrícolas atendidas (de acordo com o censo agrícola de 2017).
O inpEV é uma instituição sem fins lucrativos formada por mais de 140 fabricantes e nove entidades representativas da indústria, distribuidores e agricultores. De acordo com o gerente de Logística do inpEV, Mario Fujii, o Brasil é referência mundial. De março de 2002 até dezembro de 2021 cerca de 650 mil toneladas de embalagens vazias foram destinadas adequadamente. Atualmente mais de 200 unidades estão licenciadas e aptas para atender agricultores que possuem embalagens com sobras de defensivos agrícolas nas propriedades. Desde 2015, mais de 400 toneladas desse material foram destinadas de forma ambientalmente correta.
“Estamos em um momento de ruptura e temos um gap quando falamos de sustentabilidade no Brasil. É uma pauta mais que urgente, mas nem todo mundo percebe essa prioridade. Gosto do conceito de ‘empatia sustentável’, afinal nós também fazemos parte do bioma, também podemos perecer. O primeiro passo é imaginar que o plástico pode ser problema e também oportunidade. Quando você consegue fazer a economia circular, no lugar da linear, tudo muda. O primeiro ponto é o da conscientização: vou consumir a água na garrafinha mas não vou jogar fora e o fabricante vai recolher e tratar”, analisa Fujii.
Dar destino responsável é parte da solução
A ponta do tratamento do resíduo plástico através da reciclagem é, por enquanto, a mais avançada entre pesquisadores e empresas que atuam no setor. Recolher e dar um destino responsável ambientalmente e viável economicamente ao gigantesco passivo global de rejeitos plásticos já existente somado ao que é gerado anualmente, requer esforços dos governos, academia e iniciativa privada, enquanto novas soluções industriais são desenvolvidas.
Para a professora do Departamento de Química do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), Patricia Rezende, as longas discussões realizadas pela ONU mostram isso.
“A produção de plástico cresceu por ser um material de aplicação muito ampla. Para a gente tentar pensar na redução desse plástico, precisamos encontrar substitutos. A análise do ciclo de vida do produto é uma ferramenta muito importante, ela considera todo o ciclo, da extração da matéria-prima até o descarte. Reduzir, substituir por materiais de uso mais longo – como fibras orgânicas no caso das sacolinhas – e eliminar o uso de plástico de uso único são passos fundamentais”, destaca Patrícia Rezende.
O aumento no volume da reciclagem é visto pela pesquisadora como algo eficiente e não tão complexo, capaz de efeitos positivos sobre a economia e também no combate às mudanças climáticas, contribuindo com a geração de créditos de carbono. Favorecer a reutilização e a reciclagem reduz o descarte.
“Com a orientação dos catadores, fomentando a economia circular, o que é resíduo para um é matéria-prima para outro. Já existem exemplos interessantes de empresas e Ongs, por exemplo, retirando rede de pesca de oceanos para transformar em sacolas, roupas de praia, produzir tecido misturado com algodão. Materiais absorventes criados com componentes retirados das garrafas pet. Vão surgir muitas oportunidades, mas elas vão demandar investimentos, capacitação e educação ambiental para a comunidade em geral. Precisamos entender que não existe ‘lá fora’. O lixo volta sempre pra gente. Já comemos e respiramos plástico sem notar”, alerta a professora.
E é justamente com as garrafas pet que trabalha a também professora do Departamento de Química do Cefet-MG, Raquel Mambrini. As garrafas, tão comuns no nosso dia a dia e descartadas em lixos domésticos em todo o mundo, têm entre os seus componentes químicos o ácido tereftálico e o monoetileno glicol. Os compostos foram testados pela professora e seus alunos do mestrado como descontaminantes do petróleo.
Eles sintetizaram, em laboratório, um novo material (catalisador) capaz de remover substâncias contaminantes do petróleo, como o enxofre, o nitrogênio, o oxigênio e alguns metais. Esses contaminantes trazem uma série de inconvenientes, tanto durante o processamento do petróleo quanto na utilização final dos derivados, como corrosão de materiais, instabilidade térmica, envenenamento de catalisadores, emissão de gases poluentes – causadores da chuva ácida – durante o processo de combustão, entre outros.
Esse tipo de método é uma alternativa para as refinarias do mundo, que não estão preparadas para processar óleos pesados. Estima-se que haja depósitos de seis trilhões de barris, mas com altas concentrações de enxofre, nitrogênio, acidez e viscosidade. A expectativa é que a pesquisa se transforme em tecnologia aplicada pelas indústrias, mas essa tarefa não é fácil.
“Alcançamos a marca de remoção acima de 92%, provando ser uma ótima forma de ajudar, de maneira sustentável, o meio ambiente. A ideia não é acabar com o plástico. Não acredito em uma só solução. O grande problema ainda é a falta de escala. Precisamos de políticas públicas e mudança de mentalidade da população. A academia, no geral, está preocupada com a pesquisa, mas não como viabilidade de um negócio a partir dela”, pontua Raquel Mambrini.
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