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O presidencialismo e seu sonho de uma noite de verão

O sistema atual se mostrou ineficaz para assegurar estabilidade governamental
O presidencialismo e seu sonho de uma noite de verão
Lula e Janja no desfile do Dia da Independência, em Brasília | Crédito: Ricardo Stuckert/PR

(Do shutdown estadunidense ao Pix parlamentar brasileiro)

Os arautos do presidencialismo, vitoriosos no segundo turno da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, defenderam o sistema de governo estadunidense como a forma perfeita de colocar o poder “nas mãos do povo”, por meio de um rei eleito que governa, enquanto o Legislativo legisla e fiscaliza. Inspirados em Hamilton e Madison, nossos constituintes viam no modelo dos Founding Fathers um arranjo equilibrado, capaz de garantir um Executivo forte, limitado apenas pelos freios e contrapesos dos outros Poderes.

Importado para o Brasil, porém, esse sistema mostrou-se ineficaz para assegurar estabilidade governamental. A influência parlamentarista do primeiro turno da Constituinte impregnou o texto final de dispositivos típicos do parlamentarismo, como a medida provisória e a formação de coalizões. Nascia ali o que Sérgio Abranches chamou de “presidencialismo de coalizão”: um modelo em que o presidente, mesmo eleito por maioria popular, precisa conquistar uma terceira vitória dentro do Parlamento para conseguir governar de fato.

Com o tempo, a necessidade de apoio parlamentar ganhou cores cada vez mais intensas. O que começou com negociações ministeriais evoluiu para destinações orçamentárias, passando pelos escândalos do mensalão e da Petrobras. A lógica de sustentação política corroeu a fronteira entre governar e fiscalizar, e o Legislativo, antes contrapeso, tornou-se coproprietário do próprio poder de governo.

Essa degeneração se aprofundou com a autonomia na execução das emendas parlamentares. O fenômeno atingiu seu ápice nas chamadas “emendas Pix”, objeto de ação sob relatoria do ministro Flávio Dino, e símbolo recente de um Legislativo que não apenas legisla, mas distribui recursos, define políticas públicas e, paradoxalmente, permanece imune à responsabilização política pelos resultados dessas políticas.

Durante muito tempo, acreditou-se que o problema era a versão tropical do modelo, corrompida pela pusilanimidade constituinte ou pelos desvios dos governantes. Mas a crise recente dos Estados Unidos, paralisados por mais um shutdown orçamentário, mostra que o defeito talvez não esteja na adaptação, e sim na essência do próprio presidencialismo.

O sucesso institucional estadunidense não parece derivar exclusivamente do sistema presidencial, mas de outros fatores: o distritalismo majoritário, o bipartidarismo efetivo e, sobretudo, uma cultura política forjada em séculos de republicanismo cívico. Sem esses elementos estruturais, o presidencialismo perde seu equilíbrio e expõe suas contradições: um governante eleito que precisa implorar sustentação parlamentar para exercer o poder que a urna já lhe conferiu.

A falácia da autossuficiência presidencial foi, por décadas, mascarada pelo bipartidarismo estadunidense e pela disciplina partidária que nunca existiu no Brasil. Aqui, o presidente não governa sem o Parlamento, e o Parlamento governa sem ser governo. Essa assimetria dissolve o princípio da separação dos poderes e transforma a governabilidade em moeda de troca.

Ao fim, o Parlamento brasileiro assumiu o lado bom da função de governo, como destinar verbas, intervir em políticas públicas e definir prioridades, mas escapou do lado difícil, que é ser responsabilizado pelos resultados. O presidencialismo, nesse contexto, tornou-se um teatro de sombras em que o governante responde por decisões que não controla, e o Parlamento exerce poder sem responder por ele.

Trinta e cinco anos depois da Constituição de 1988, talvez o País precise despertar do seu sonho de uma noite de verão. O Brasil pode estar com um encontro marcado com o parlamentarismo, não por ser o sistema mais perfeito, mas por ser o mais honesto com a realidade parlamentar que, de fato, vigora há mais de três décadas.

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