Opinião

Direito adquirido ou privilégio adquirido?

Epiphânio Camillo*

Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de não a ouvir? (Voltaire, 1764)

As dificuldades para implementar mudanças que satisfaçam a um só tempo às necessidades e direitos adquiridos de muitos, e contemplem os requisitos e fundamentos técnicos da verdade atuarial são, dentre outros, um dos imensos desafios com os quais nos defrontamos nessa missão de reformar o Estado, sua estrutura, rever seus objetivos, revigorar a crença de que é possível caminhar para uma solução compartilhada e democrática, resgatar a cidadania, eliminar as exclusões.

Há, porém, lógica equivocada fundada em hábitos, regulamentos e interesses, que conduz à preservação e defesa dos chamados direitos adquiridos dos aposentados da Previdência Social. A questão é: em que bases éticas, em quais parâmetros ou paradigmas está baseada esse presuposto? A garantia de manutenção desses direitos é tecnicamente possível? Moralmente defensável? Politicamente adequada? Quais os limites aceitáveis e até que ponto poderão ser sustentados os atuais regimes de benefícios sem comprometimento de todo o sistema?

Não se pode tratar igualmente o que a natureza (ou o sistema social) tornou desigual. Para ser justo é necessário ser adequadamente desigual para com os desiguais, os que não alcançam oportunidades, para não os condenar à exclusão. É preciso incentivar e exercitar nossa capacidade de doação, de contribuição para o coletivo, de forma que os mais bem-aquinhoados possam permitir a alavancagem das potencialidades daqueles que, pelas mais diversas razões, não as puderam ou não as conseguiram operacionalizar. Torná-los produtivos, participantes ativos da coletividade.

Esta é a lógica da inserção social, que tem fundamentos tanto humanitários quanto econômicos.

Em muitos casos – e a Previdência Social tem exemplos atuais, contundentes e marcantes – tal lógica é inversa. E perversa. Cria o fenômeno da “solidariedade invertida” da qual muito falava o ex-ministro Reinhold Stephanes: retira de quem menos possui, distribui generosamente aos mais bem remunerados com a cobertura de mecanismos legais, enquadrando e classificando privilégios como direitos adquiridos. São “esses privilégios adquiridos” que devem ser alterados ou revogados.

Como falar em direito adquirido ao defender a garantia de manutenção desse status quo nas reformas se o cerne dessa afirmação, e dessa lógica, está fundado em distribuição de poupanças que foram obtidas de todos e se transformam em benefícios que não podem, matematicamente, alcançar a todos? Como concordar com a cristalização de erros que são justamente o foco, o alvo, a motivação principal da reforma previdenciária? Como desconhecer as bases das equações atuariais que não permitem a manutenção do regime de benefícios atuais? Como justificar o alcance – o saque – às poupanças que estão ainda sendo formadas pelos contribuintes ativos para suprir as atuais e futuras demandas desses privilégios adquiridos? Como estabelecer reforma que só valha “daqui para frente” quando a injustiça de tratamento e o déficit são problemas “daqui para trás”? É lícito condenar uma geração de contribuintes a continuar suportando tantos desacertos?

Direito adquirido não pode ser confundido com privilégio adquirido nem conduzir à lógica de que a garantia dos direitos de uns implique necessariamente na exclusão de outros, principalmente quando os excluídos são em grande parte aqueles aos quais geralmente só coube a responsabilidade de contribuir, quase sempre compulsória.

Direito socialmente correto e democraticamente justo é bem que, ao menos hipoteticamente, pode vir a ser distribuído ou ser expectativa viável para todos. Senão como admitir que para usufruir desse bem tenhamos que retirar de outros, daqueles que ainda estão se habilitando para recebê-lo no futuro?

Na perspectiva de alguns, temos observado ênfase na formulação de teorias, com lógica duvidosa, em defesa dos direitos adquiridos; porém, é necessário atentar para o fato de que a sustentação desse modelo, em contrapartida, exige o dever adquirido de todos continuarem contribuindo compulsoriamente.

*Vice-presidente da Associação Comercial de Minas

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