Opinião

O Corvo (IX)

Marco Guimarães*

Amanhece. O velho caminho de terra batida, que liga a casa dos meus pais à estrada principal, está coberto por pequenas gotículas de orvalho depositadas no capim que o margeava. Os tímidos raios do sol que começam a despontar atrás das montanhas, ao incidirem sobre essas gotículas, criam um caleidoscópio, interrompido momentaneamente pela passagem de um Chevrolet preto, que se dirige à casa. Uma vez chegando ao seu destino, a porta do carro se abre e dele saem quatro homens. Vestidos com mal cortados ternos pretos, usando óculos escuros e com um ar sorumbático, caminham até a varanda que rodeia a casa. Uma vez lá, dirigem-se à porta. Um dos homens cerra seus punhos e, com rápidos e insistentes movimentos, se faz anunciar. A porta se abre. Minha mãe aparece e diz: — Pois não, o que desejam? — Chame o Sr. Francisco, queremos falar com ele — diz um deles, em tom pouco amistoso. — Ele não está — responde a mulher. — Amanhã voltaremos, se ele não estiver aqui, a Sra. irá em seu lugar. — E mais não disseram.

A imagem que vejo na tela se dissolve em uma cor branca e revela em seu lugar um novo dia; um novo amanhecer. A terra parece vomitar um bizarro vapor que deixa transparecer, com algum custo, um céu colonizado por pesadas nuvens tingidas de cinza-escuro. Um forte raio emerge dessas nuvens e ilumina o mesmo carro preto do dia anterior, que chega, mais uma vez, à casa. A cena se repete. Os mesmos homens. O mesmo punho cerrado. Os mesmos movimentos. As mesmas batidas à porta. São, então, convidados a entrar, mas eu não posso acompanhá-los porque a imagem não avança através da porta, agora fechada. Posso, entretanto, ouvir a discussão, alguns gritos e dois tiros de revólver, seguidos por um silêncio sepulcral. A porta se abre e dela saem os quatro homens carregando uma pessoa, aparentemente desfalecida, que pressuponho seja meu pai, com a cabeça coberta por um capuz. Entram no carro e desaparecem em seguida.
Os gritos e os tiros chamaram a atenção dos vizinhos, que correm em direção à casa dos meus pais. Quando entram, deparam-se com a minha mãe caída ao pé da mesa. Colocam-na, então, em um carro e saem a toda velocidade.

Chegam a um grande prédio amarelo em estilo colonial português, com grandes janelas azuis e em cujos vitrais se distinguem figuras de santos, levando qualquer um a concluir que o local deva pertencer a alguma ordem religiosa católica e, provavelmente, seja administrado por freiras.

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A câmera dá um zoom sobre o portal do prédio e o coloca em um grande plano. A porta, agora focalizada em toda a tela, se abre, mostrando-me um longo corredor com paredes na cor verde-clara, em sua parte inferior. Em sua parte superior, a parede tem uma cor bege, onde se pode distinguir o desenho de pequenas flores aleatoriamente pintadas. O piso ladrilhado exibe pequenos losangos coloridos, simetricamente dispostos ao longo de toda a sua extensão. Do teto, na cor verde-musgo, pendem grandes lustres com uma dúzia ou mais de lâmpadas, iluminando o ambiente. Dois enfermeiros empurram apressadamente uma maca e entram em um elevador. Um novo zoom, agora em uma tomada plongé, mostra minha mãe envolta por um lençol cuja cor branca foi tingida de vermelho-escuro, proveniente da forte hemorragia que ela apresenta.

O elevador para no quinto andar, os enfermeiros saem e a levam diretamente à sala de cirurgia. Uma vez lá, já a esperam um cirurgião geral, um obstetra, um anestesista, o pessoal de apoio. Há também uma mulher de pele muito branca, quase translúcida, dona de grandes e penetrantes olhos negros que, ao que tudo indica, não está sendo notada pelos que lá estão. O que parece ser o chefe da equipe diz: — A situação é muito grave, não sei se conseguiremos salvar mãe e filho.

Virgínia tentou telefonar para Maurice para dizer que aceitaria a sugestão que Annick lhe fizera: pedir uma licença, deixar temporariamente Paris e ir para Borgonha assumir a direção de uma escola cujo cargo estava vacante.
Era um primeiro passo para concretizar a vacilante decisão que a angustiava, embora soubesse que a sua natureza só poderia suportar, até certo ponto a tristeza que viria com o rompimento de uma relação que durava mais de vinte anos.

Seria preciso que preenchesse o vazio que se seguiria nos próximos dias, talvez nos próximos meses, com alguma coisa. Ter consciência do fato já era um bom sinal, e, de qualquer modo, não estava tomando uma decisão impensada.

Nutria a esperança de que, a partir daquele momento, algo de novo se descortinaria na vida de cada um deles, algo que ainda não sabia o que era, mas que a fazia crer que a permitiria superar a separação.
— Em Fixin? — perguntou Isabelle, quando, em uma conversa com Virgínia e Annick, soube da notícia — Você deve estar louca, Virgínia, a cidade é mínima — continuou ela.
— Não se esqueça de que é um polo turístico importante e… — interveio Annick, logo interrompida por Isabelle.
— No verão sim, Annick, mas no inverno, minha querida, será um deserto sem vivalmas nas ruas.

Virgínia, que até então ouvia em silêncio a conversa, achou que deveria intervir e lembrou a Isabelle que sabia que a angústia ou a tristeza que viesse a sentir seria a mesma em Paris ou em Fixin, mas ver os locais que ela e Maurice frequentaram por anos poderia aumentá-la.

Conhecer outras pessoas e mudar de ares, segundo ela, ajudaria a enfrentar melhor a situação. — E depois — continuou Virgínia —, a primeira coisa que eu faria quando me sentisse deprimida, se ainda estivesse em Paris, seria me reaproximar do meu marido.
— A distância, Isabelle, entre Fixin e Paris poderá ser uma fiel parceira nesta luta. Ficar aqui seria ver a coisas como elas não são; e eu preciso romper com a ilusão que esse relacionamento criou. E depois, Isabelle, aqui a Virgínia está míope, ela precisa de óculos mais fortes para se curar de tudo isso, e tenho a certeza de que irá encontrá-los em Fixin — disse Annick.
— A conferir, a conferir — disse Isabelle. — Eu não tenho tanta certeza de que isso funcionará, mas espero que a minha querida amiga encontre a paz que merece.
Annick, então, se despediu das duas, combinando a hora em que pegaria Virgínia para juntas irem à Borgonha.

  • Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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