Opinião

O Corvo (IX)

Marco Guimarães*

Na grande tela do cinema aparece agora uma figura enigmática, e nela só se distingue o seu rosto, iluminado por um spot. Sua expressão, de uma serenidade contagiante, transmite-me uma sensação de calma.
Tenho a impressão de que a conheço, mas a fraca luz que ilumina o seu rosto me deixa em dúvida. De qualquer forma, a sensação de já termos nos encontrado persiste.
 — Você deve estar querendo saber quem eu sou, não é? — perguntou ela.
 — Não faria mal se você me dissesse, mas se não disser também, que fazer? Tudo isso é tão estranho; eu sequer sei se estou vivo; essa, sim, poderia ser a minha principal preocupação. Quanto a você, bem, quanto a você, se me disser quem é, está bem, se não me disser, não estará mal.
 — Nos conhecemos há alguns séculos; você salvou a minha vida, por isso estou aqui. Mas não cabe a mim dizer se você está vivo ou morto; talvez esteja morto, talvez esteja…
— Ou talvez esteja vivo, mas igualmente morto, porque quem sabe não fiz de minha vida algo tão insignificante que pareço estar morto?
— Engano seu, o mundo dos mortos talvez não seja tão carente de significâncias como parece. De qualquer modo, esses episódios que você está revendo poderiam ser a causa, ou não, de sua morte.
— Bem, por enquanto revi a minha mãe, prestes a me parir, gravemente ferida, correndo sério risco de morte. Ah, vi ainda um cachorro que, depois de fazer de mim uma bola de futebol, tentou me almoçar.
— Pois verá muito mais. Pode ser, como acabei de falar, que tenha morrido em uma dessas situações, ou em outras mais, que verá.
— Pera lá, há algo errado aqui. Se a minha mãe tivesse morrido, provavelmente eu não teria nascido, portanto, não teria sido atacado pelo cão.
— Sim, mas se você estiver morto, quem sabe não estaria vendo o que poderia ter ocorrido se tivesse uma vida pela frente? Afinal, na dimensão dos mortos, tudo é possível.
— Mas para que me dar o gosto de ver uma vida que não tive? Me mostrar o carinho de meus pais, que eu não pude aproveitar; me mostrar o amor e as paixões pelas mulheres que eu não pude ter; e não me permitir ter as minhas preferências e escolhas.
— Lembre-se, não é preciso estar morto para deixar de ver tudo isso que você acabou de falar. Muitos passam pela vida como se não tivessem existido. Mas não se preocupe, se você estiver morto, nada disso o afetará. E quanto às preferências e escolhas no mundo dos mortos, não há porque ter preferências, e, além disso, as escolhas são muito poucas.
— Escolhas… se eu estiver morto poderei escolher algo? Imagino que o meu livre-arbítrio termina com a morte, não é?
— Não é bem assim, não. As escolhas são poucas, já lhe afirmei, mas você poderá ganhar os céus ou sentenciar-se ao inferno.
— E haveria alguma razão para não escolher o céu? — perguntei.
— Bem, há os que preferem as conveniências apresentadas pelos servos de Lúcifer.
— É, mas posso lhe garantir que eu me sentiria mais atraído pelas conversas dos anjos.
— Você pode também ficar em uma zona intermediária, subir através de fendas e visitar o céu, ou através dessas mesmas fendas descer aos infernos. Depois disso, faria suas opções. Essas seriam as suas escolhas — disse a enigmática figura, finalizando o diálogo.
 

  • Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a fila”, “O corvo”, “O portal” e “A escolha”

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