Opinião

O Corvo (XII)

Marco Guimarães*

Quando o carro de Annick deixou a Rue Pascal e dobrou na Claude Bernard, Virgínia olhou para trás, e, mais uma vez, diante da amiga, não conseguiu conter o choro.

Ela sabia que a qualquer momento poderia voltar a Paris e andar pelas calçadas do Quartier Latin, mas não seria a mesma coisa. Naquele momento, ela cortava o cordão umbilical com o bairro que a abrigara por 35 anos. Diria depois a Annick que, após aquele último olhar, sentiu que todo o bairro era extraído de dentro dela, e que um vazio sem igual tomara conta de seu corpo.

— Isso passa, querida. Abra o porta-luvas e pegue a caixinha de lenço de papel. Vamos, enxugue essas lágrimas. Você verá que a solidão das campinas da Borgonha será um bálsamo que a fará esquecer tudo isso. E depois, esse tempo horrível de Paris, com todos esses raios que parecem não ter mais fim, não é lá ambiente para quem quer se livrar de angústias e outros sentimentos menos nobres. Mas, de qualquer modo, é preciso lembrar-se de uma coisa, e aí recorro a…

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— Desculpe-me interrompê-la. Eu sou uma boba sentimental, disse Virgínia, inclinando-se o suficiente para abrir o porta-luvas e retirar de lá os lenços de papel.

— Bem, continuando, recorro a uma coisa que Santo Agostinho costumava dizer: Non in tempore, sed cum tempore Deus creavit caela et terram. Você sabe o que isso significa, Virgínia?
— Você deve estar brincando, Annick. O pouco que aprendi de latim ficou lá atrás.

— Não no tempo, mas com tempo Deus criou o céu e a terra. Digressionalmente, podemos dizer que isso se aplica à sua situação. Em resumo, dê tempo ao tempo, minha querida, e verá como tudo vai se resolver.

— Sabe de uma coisa, Annick? Em um desses dias em que a angústia tomou conta de mim eu pensei numa coisa. Pensei por que uma pessoa como eu, que apesar de minhas eventuais depressões, sempre enfrentou bem situações difíceis, sucumbe diante de uma separação? Concluí, então, que nos tornamos o que somos sem sequer suspeitarmos o que e como realmente somos.

— Querida, temos alma e sentimentos, e se eles nos fazem descobrir as nossas fraquezas, podem também nos mostrar que somos fortes o suficiente para vencer os obstáculos.

— É fácil falar, Annick, quando não se vive o drama.

— Virgínia querida, eu passei por quatro separações, mas nenhuma delas me afetou. Aprendi a suspender voluntariamente todo e qualquer sentimento que pudesse me assaltar e trazer infelicidade. Atualmente só tenho uma paixão, cuidar do meu jardim; todas as demais eu tranquei dentro de um quarto e joguei as chaves fora.

Uma nova crise de choro toma conta de Virgínia, que diz para Annick parar o carro. Ela decide ficar mais um dia em Paris, achava que não se despedira como devia de Maurice. Precisava falar com ele, ter certeza de que ele ficaria bem. De nada adiantaram as ponderações da amiga, que tentou convencê-la a viajar naquele mesmo dia.

— Irei amanhã, não se preocupe. Como prova do que falo, deixarei que você leve as minhas malas, ficarei apenas com essa pequena, que contém uma muda de roupa e objetos pessoais, disse ela, ao sair do carro.

  • Escritor. Autor dos livros “Fantasmas de um escritor em Paris”, “Meu pseudônimo e eu”, “O estranho espelho do Quartier Latin”, “A bicha e a Fila”, “O corvo”, “O portal”, e “A escolha”
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