Opinião

Tragédias de Brumadinho e Mariana

Cristina Serra*

O assombroso desastre da barragem da Vale, em Brumadinho, ainda tem muitas perguntas sem resposta. Qual era exatamente a situação da estrutura quando do seu rompimento? Quais níveis hierárquicos tinham conhecimento dos riscos? Que providências foram tomadas? A investigação haverá de responder a todas elas. Antes, porém, que as responsabilidades sejam claramente definidas, uma coisa é certa: poucas vezes se viu tamanho descaso com vidas humanas como neste desastre. Não há explicação razoável para a manutenção do escritório e do refeitório dos trabalhadores no caminho da lama.

Sabe-se que quando a Vale comprou aquele complexo minerário a situação já estava posta. Por que as instalações não foram transferidas para local seguro? Quando assumiu a presidência da empresa, Fábio Schwartzman disse que seu lema seria “Mariana nunca mais”. É de se supor que, com tal preocupação, deveria ter sido feito um mapeamento de eventuais riscos e o da chamada Barragem 1 deveria estar entre os primeiros a ser eliminado, com a imediata transferência das instalações, que concentravam grande número de trabalhadores exatamente no caminho que a lama de rejeitos percorreria em caso de acidente.

Barragens não rompem por acaso. Essas estruturas são complexas obras de engenharia, que vão sendo erguidas e ampliadas na medida em que aumenta a extração de minério de ferro e a consequente necessidade de armazenamento dos rejeitos decorrentes desse processo. São, portanto, estruturas dinâmicas que envolvem certa margem de risco, mesmo que cumpram rigorosamente todas as normas de segurança. A gerência de risco mais elementar não permitiria tamanha situação de vulnerabilidade para os trabalhadores e moradores de bairros próximos ao complexo industrial da Vale.

Vimos o mesmo descaso com a vida humana no desastre da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, em novembro de 2015. A barragem não tinha sirene de alerta para emergências. O número de mortes só não foi maior graças à coragem de Paula Geralda Alves, funcionária de uma empresa terceirizada da mineradora, que estava no meio do caminho entre a barragem e o povoado de Bento Rodrigues. Ao ver a lama se aproximando, Paula não hesitou. Com a lama em seu encalço, subiu na sua moto e correu para o povoado, a cerca de dois quilômetros de distância do ponto onde se encontrava. Ela rodou pelas ruas gritando: “A barragem rompeu, a barragem rompeu. Corre todo mundo”.

Paula só parou quando a gasolina acabou. Empurrou a moto morro acima, juntou-se à sua família e amigos e de lá viu o povoado de três séculos desaparecer, devorado pelo monstro de barro. Paula salvou cerca de 400 pessoas. Ela foi a sirene que a Samarco não tinha. O colapso de Fundão matou 19 pessoas, atingiu 38 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo e despejou 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia do rio Doce.

Em 2015, a lei não exigia a instalação de sirenes. Passou a exigir depois do desastre em Mariana. No caso de Brumadinho, havia a sirene, mas ela não funcionou porque, tal como os escritórios e o refeitório, também foi engolida pela lama.

Esta segunda tragédia acontece no momento em que o novo governo federal e o governo de Minas Gerais tem em suas agendas a mudança de leis de licenciamento ambiental. As críticas à legislação atual são todas no sentido de que “a lei atrapalha”, “há burocracia demais” e “isso atrapalha o desenvolvimento das empresas”. O que se quer é um “liberou geral” para que as empresas façam o que bem entenderem e não tenham que responder à sociedade e aos órgãos de fiscalização. Espero que o custo humano incalculável dos 166 mortos (até agora) e dos cerca de 160 desaparecidos do desastre da Vale mudem o eixo dessa discussão: dos interesses econômicos das empresas para a segurança das pessoas e a proteção ao meio ambiente. Para que nunca mais ouçamos o grito de desespero que ouvimos em Mariana e Brumadinho: “Corre. A barragem rompeu”.

  • Jornalista
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