‘O futuro está na inovação e não há como desenvolver inovação sem ciência e tecnologia’, diz reitora da UFMG

Referência na produção de conhecimento e na transferência de tecnologia no Brasil, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem buscado ampliar sua interlocução com empresas, governos e sociedade civil. À frente dessa estratégia está a reitora Sandra Goulart, que vê na articulação entre academia e setor produtivo um dos caminhos mais promissores para o desenvolvimento sustentável a longo prazo. Segundo ela, o Estado com o maior número de universidades públicas do País “tem a faca e o queijo na mão” para transformar ciência e inovação em resultados concretos para a economia e para a vida da população.
Nesta entrevista ao Parceiros do Futuro, a professora aborda o papel da chamada tríplice hélice, ampliada pela participação da sociedade civil, na promoção da inovação. Ela lembra que a UFMG lidera, há anos, o ranking nacional de depósitos de patentes, mas que o grande desafio está em transformar descobertas em soluções aplicáveis.
Apesar dos avanços, a reitora reconhece que ainda existem barreiras para uma interação mais fluida entre universidade e setor privado. Entre elas estão o distanciamento histórico entre as partes, a falta de incentivo fiscal direcionado à ciência e a preferência de algumas empresas por tecnologias importadas. O Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação tem potencial para facilitar essa aproximação, mas ainda é pouco difundido e explorado.
Com o olhar voltado para o futuro, Sandra Goulart revela planos para ampliar estruturas transdisciplinares, fortalecer centros tecnológicos e criar um novo campus voltado à sustentabilidade. Para ela, a inovação só se sustenta quando apoiada em ciência e tecnologia, e é nesse tripé, aliado a parcerias estratégicas, que a UFMG pretende pavimentar seu caminho para os próximos 100 anos.
A senhora costuma destacar que a articulação entre academia, governos e setor privado é essencial para o desenvolvimento sustentável a longo prazo. Na prática, quais são os elementos-chave para que essa interlocução funcione de forma efetiva e contínua?
Trata-se da tríplice hélice, que é justamente a convergência entre o que é produzido na academia e a indústria, e que conta também com o papel essencial do Estado. Até tem sido agregado outro elemento: a sociedade civil, já que esta também precisa se comprometer com relação a isso e pensar sobre as parcerias do ponto de vista sustentável. São pontos que devemos discutir quando falamos de inovação e transferência de tecnologia. A UFMG é pioneira no Brasil; fazemos isso há muitos anos. Lideramos o depósito de patentes, que é o registro de propriedade intelectual de uma invenção ou de uma descoberta. Aqui no Brasil, apenas as universidades e algumas empresas, como Fiat e Petrobras, lideram o depósito de patentes. A UFMG lidera há muitos anos esse ranking, e isso já é o início do processo de proteção e valorização do conhecimento produzido aqui para ser negociado em outro momento. Mas o grande ‘pulo do gato’ é a possibilidade de pegar uma descoberta da universidade e fazer a transferência de tecnologia. Um case de sucesso histórico é o da Leish-Tec, a vacina contra a leishmaniose canina, única aprovada pelo Mapa. Foi produzida aqui na UFMG por um grupo de pesquisa, e essa transferência de tecnologia foi passada para uma empresa, à época, uma farmacêutica mineira, que começou a produzir. Hoje, outra detém esse conhecimento e a produz. Isso tudo retorna em royalties tanto para a universidade quanto para o governo de Minas. Por isso, a inovação, a ciência e a tecnologia são tão essenciais para Minas Gerais, Estado da Federação com o maior número de universidades públicas, comprometidas não apenas em formar pessoas, mas também em produzir conhecimento e transferi-lo para a sociedade por meio de tecnologias ou de outras ações de extensão universitária.
Quais barreiras ainda dificultam essa integração? E como superá-las, especialmente em um contexto de restrições orçamentárias?
Hoje temos muito mais transferência de tecnologia do que tínhamos há anos, mas ainda há várias barreiras. Uma delas é o certo distanciamento da academia – universidades e institutos de pesquisa – das empresas. Mas as relações não são mais como no passado, e essa ideia de que a universidade não dialoga com o setor produtivo ficou para trás. Da mesma forma, as indústrias eram muito tímidas no começo e chegavam à universidade com questões pontuais que nem sempre tínhamos a solução. Isso ainda acontece, sendo preciso formar um grupo de pesquisa para estudar aquele problema. Essa mudança demorou para acontecer, até mesmo por falta de uma intervenção mais concreta por parte do governo. Se as empresas têm isenção fiscal para atuarem por outro meio, por que elas vão investir em ciência e tecnologia? Muitas vezes pensam que é mais fácil comprar uma tecnologia do exterior do que usar uma desenvolvida aqui. Isso também tem mudado muito, mas ainda é um desafio. O Brasil ocupa o 13º lugar em termos de produção de conhecimento, mas, na transferência de inovação, o índice cai consideravelmente. Falta uma postura mais ativa por parte das universidades, e é o que temos procurado fazer. Falta também uma receptividade maior por parte das empresas e o conhecimento de que estamos dispostos a fazer essa transferência de tecnologia.
O Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação trouxe avanços na aproximação entre empresas e instituições de ensino, mas ainda é preciso difundi-lo mais. O que pode ser feito para incentivar o setor privado a utilizá-lo?
Durante muitos anos, a legislação foi muito burocrática e difícil. Hoje, o Marco Legal tem facilitado muito essa interlocução, traz diversas inovações para o setor, mas é pouco conhecido pelas instituições. Temos feito um esforço muito grande, inclusive junto às associações que representam as instituições de ensino superior, para divulgá-lo cada vez mais. Também temos promovido vários eventos e procurado trazer as empresas para conhecer nossa estrutura e nossos laboratórios. Um exemplo das facilidades que a nova legislação permite é que qualquer empresa pode usar os laboratórios da instituição, desde que assine um acordo de cooperação.
A senhora costuma dizer que Minas Gerais tem “a faca e o queijo na mão” quando se trata de inovação e ciência de base. Como transformar esse potencial em resultados concretos para a economia e a sociedade mineira?
Eu gosto dessa metáfora porque, de fato, Minas tem a ‘faca e o queijo na mão’, com tantas universidades públicas. As alianças estratégicas, por exemplo, que também estão previstas no Marco Legal, permitem aproximações sem um comprometimento específico. Traça-se um alinhamento estratégico sigiloso, de forma que academia e mercado possam se aproximar. A partir daí, iniciamos um grupo de estudos e trabalho para definir com o que cada um pode contribuir. As spinoffs acadêmicas, que são aquelas empresas que nascem a partir de um esforço dos estudantes ou de um grupo de professores, também são uma opção. O Google tem um escritório de pesquisa aqui em Belo Horizonte, que surgiu de uma spinoff de um professor da UFMG e foi comprada pelo Google. Esse mesmo professor também abriu uma empresa recentemente adquirida pelo Bradesco. Sem contar os inúmeros produtos desenvolvidos com nanotecnologia. A área da saúde é muito forte, tanto que a única vacina do Brasil contra a Covid-19 está sendo produzida aqui na UFMG, no CT Vacinas. Nossa Spin-Tec já está na fase três, e esperamos que, no ano que vem, tenhamos essa vacina 100% brasileira e da UFMG. E ainda existem as unidades Embrapii, empresa federal brasileira que destina verba aos grupos de pesquisa para que possam negociar com as empresas. Em Minas há três: uma na área de ciência da computação, outra de fármacos e mais uma de nanotecnologia. Por isso eu digo que Minas tem a ‘faca e o queijo’. São várias ações que impactam a transferência de tecnologia.
E como o empresário faz para ter essa interlocução?
São várias as possibilidades de aproximação. A mais comum é por meio de algum conhecido dentro dos laboratórios, o que torna tudo mais fácil. Outra é por meio da Vitrine Tecnológica, um site que reúne tudo o que é produzido nas diferentes áreas de conhecimento. É uma maneira de aproximarmos a produção da academia das empresas, de forma que elas tenham acesso a esse conhecimento. A Fapemig também é um instrumento muito potente para fazer essa conexão, além do contato com a Coordenadoria de Ciência e Tecnologia para demandar algum produto ou tecnologia. São vários casos sob encomenda, algo previsto também pelo Marco Legal. Muitas vezes, a empresa não sabe exatamente o que quer; acessa a Vitrine e consegue identificar algo que se aproxima do que deseja. Por exemplo, temos um campus em Montes Claros e, uma das minhas ações como reitora, foi fazer uma reunião com as empresas instaladas na região para saber do que estavam precisando. Surgiram ideias de cursos de qualificação para a área de farmácia industrial, então estamos desenhando um curso na área e também trabalhando em encomendas tecnológicas.
Olhando para os próximos anos, quais as estratégias a UFMG pretende adotar para fortalecer essa interlocução e o papel da universidade como agente desse desenvolvimento sustentável?
O futuro está na inovação, e isso já sabemos, e não há como desenvolvê-la sem ciência e tecnologia. A universidade fala de ciência, tecnologia e inovação, e as empresas e instituições falam de investimento para o futuro do País e de Minas Gerais. Temos trabalhado muito nesse sentido. Uma das ações que realizamos foi criar os Centros de Tecnologia. Vários já evoluíram e se tornaram institutos e grupos de pesquisa consolidados, como é o caso do nosso CT Vacinas, que se tornou um centro nacional de vacinas e vai posicionar Minas Gerais como terceiro polo na produção do País, depois do Rio de Janeiro e de São Paulo. Também temos investido muito em estruturas de pesquisa que sejam transdisciplinares, pois sabemos que a resolução dos problemas pelos quais passam o Brasil e o mundo só se dará por meio do conhecimento, que é interdisciplinar. Hoje, uma disciplina apenas não dá conta do conhecimento necessário para resolver um problema específico. Temos ainda o projeto de criar, em Pedro Leopoldo, um campus da UFMG para projetos sustentáveis. A ideia é levar para lá todas as ações de sustentabilidade da universidade, de forma que possamos trabalhar transversalmente as várias áreas do conhecimento. O projeto que transforma rejeito da mineração em tijolos já funciona no local. São apenas algumas das ações que vislumbramos não apenas para o centenário da UFMG, a ser celebrado em 2027, mas também para a construção dos próximos 100 anos da instituição.
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