Parentes de vítimas relatam suas perdas na CPI da Covid

Brasília – Em um dia exclusivamente dedicado a ouvir vítimas da Covid-19, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado, a enfermeira obstetra Mayra Pires Lima revelou ontem como foi trabalhar no Amazonas durante o colapso enfrentado pelo Estado no início deste ano, em meio à falta de insumos e oxigênio hospitalar para tratar pacientes da doença.
Emocionada, a enfermeira contou que hoje é responsável por quatro sobrinhos, filhos de sua irmã, que morreu durante o colapso da saúde em Manaus. À época do falecimento da irmã, Mayra disse que as crianças menores, gêmeas, tinham apenas quatro meses de vida.
“Muitas vezes eu assumia a assistência de saúde da minha irmã porque nós tínhamos cinco técnicos de enfermagem para cuidar de 80 pacientes graves”, destacou Mayra aos senadores. “Só em Manaus nós temos mais de 80 órfãos da Covid. Só na minha família são quatro”, destacou, questionando o que está se fazendo por essas crianças e por essas famílias.
Mayra acrescentou que também foi infectada pelo novo coronavírus e perdeu outro irmão para a doença. “Um pouco de bom senso e um pouco de humanidade por parte dos gestores teriam dado um rumo diferente à pandemia no Amazonas”, disse. Segundo ela, durante todo o ano de 2020, os profissionais de saúde com quem trabalha tiveram que comprar seus equipamentos de proteção individual. Ela agradeceu aos amigos que em várias ocasiões doaram os que ela usou.
No Senado, a enfermeira comparou a situação dos profissionais de saúde a “um cenário de guerra”. “No Amazonas, tivemos uma situação bastante difícil. Quando eu me formei, tinha grande sonho de ajudar em outras calamidades. Hoje, eu falo que eu vivi uma guerra, atendi pacientes às vezes sem proteção nenhuma”, declarou.
Mayra lembrou ainda que no Amazonas a Covid-19 vitimou “ótimos médicos e obstetras”. “Perdemos colegas pra depressão e suicídio”, destacou. Segundo ela, somente entre enfermeiros, foram 82 óbitos, sem contar os que ficaram com sequelas. “A gente via postagens sobre os nossos heróis. Nós não queremos parabéns, queremos valorização”, disse ao defender a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2564/2020, que visa aumentar o piso salarial dos profissionais da enfermagem.
Em resposta ao pleito, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) disse que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), comprometeu-se a pautar a matéria “o mais breve possível” no plenário da Casa. A recomendação de aprovação da proposta também estará no relatório final do senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Em outro depoimento, Giovanna Gomes Mendes da Silva, de 19 anos, que perdeu a mãe e o pai por complicações da doença em um intervalo de 14 dias, também falou aos senadores das dificuldades que enfrenta. Hoje a jovem, que tem a guarda da irmã mais nova, de dez anos, diz passar por problemas psicológicos e financeiros. “Antes, vivia uma vida de alegria com alguns momentos de tristeza. Hoje, vivemos tristes, e uma ou outra coisa nos deixa alegres”, destacou.
A jovem lembrou aos senadores que, antes de ser intubada, sua mãe chegou a passar uma noite inteira internada com uma máscara de oxigênio furada e que acredita que isso tenha agravado a situação de saúde dela. “Trocaram, mas de qualquer forma o quadro dela se agravou.”
Dois dias depois, seu pai foi internado. O homem já havia se recuperado da Covid-19, mas tinha um câncer, que segundo ela, após a doença, se agravou muito. “A gente não teve nem tempo de sofrer pela minha mãe, pois não podia ficar chorando na frente do meu pai”, contou a jovem. “Perdemos as pessoas que mais amávamos.”
Sem os pais, Giovanna relatou que se mantém e cuida da irmã com ajuda de doações de parentes da mãe que contribuem “com o pouco que têm”. “Passamos a não ter nossos dois pilares e também não ter quem nos ajudasse”, disse.
Propostas legislativas – Como resultado dos trabalhos da comissão, os senadores também adiantaram que vão apresentar uma proposta legislativa para que os órfãos de responsáveis vitimados pelo novo coronavírus recebam um auxílio financeiro de um salário mínimo até completarem 21 anos de idade. A CPI vai sugerir também a inclusão da Covid-19 na relação de doenças que ensejam aposentadoria por invalidez quando a perícia médica atestar.
Outra experiência ouvida pelos senadores foi a de Katia Shirlene Castilho dos Santos. Ela também perdeu pai e mãe para a Covid-19. “Fiz do meu luto uma luta”, disse. Segundo a depoente, o pai contraiu a doença em março deste ano, uma semana antes de poder receber a vacina. O homem faleceu enquanto a esposa estava internada, em São Paulo, em um hospital da rede Prevent Senior. “Ele não teve nenhuma despedida digna e isso aconteceu com muitos brasileiros”, disse.
Kátia contou que sua mãe, de 71 anos, foi tratada com o chamado kit covid após uma teleconsulta feita pela operadora. “Não fizeram nenhum exame e acabaram mandando o kit Covid”, disse. “Como você vai falar para uma idosa de 71 anos que confia no convênio, que aquele remédio que o médico mandou para ela, para cuidar dela, não estaria fazendo nada?”, disse. Entre outras várias denúncias, a operadora, investigada pela CPI, é acusada de obrigar médicos a prescrever medicamentos sem eficácia comprovada para tratamento de pacientes com coronavírus. O plano de saúde nega as acusações.
A CPI também ouviu ontem o taxista Márcio Antônio do Nascimento da Silva, que contou sobre a perda do filho Hugo Dutra do Nascimento Silva, de 25 anos. Hugo foi atendido em uma unidade de pronto-atendimento (UPA) em Copacabana, no Rio de Janeiro, transferido para um hospital, intubado por 15 dias, mas não resistiu.
Com a voz embargada, Silva narrou os últimos dias de vida de seu filho, quando ele começou a sentir cansaço e falta de ar. O taxista disse ter acompanhado Hugo no hospital até o seu falecimento, e lembrou com pesar do dia em que teve de reconhecer o corpo do filho.
“A última vez que o vi, ele estava dentro de um saco”. O depoente criticou declarações do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre a Covid-19 e a demora do Brasil para a aquisição de vacinas. Segundo ele, o que dói não é apenas o luto, mas o que veio após a morte de Hugo: “O deboche, a irracionalidade das pessoas, inclusive de amigos”. “Eu daria a minha vida para o meu filho ter chances de ser vacinado”, disse.
O taxista lembrou aos senadores como foi o episódio em que foi flagrado na Praia de Copacabana, em abril de 2020, recolocando as cruzes que homenageavam as 100 mil vítimas da doença à época – colocadas por uma organização não governamental – que haviam sido derrubadas por outra pessoa. Silva contou que, na ocasião, foi agredido verbalmente. “Quando descobriram que era apenas um pai que estava triste pelo seu filho, foi um constrangimento geral”, disse.
Para ele, o início da CPI da Pandemia foi um alívio. Ele destacou que sentiu alento em pensar que nem todas as autoridades diriam “e daí” para os óbitos em decorrência da pandemia. “Para mim, não importa o partido político dos senhores, o que importa é que meu Hugo não volta mais, mas tenho outros filhos e quatro netinhos”, disse.
Relator minimiza discordâncias de senadores
Brasília – O relator da CPI da Covid no Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou ontem que é natural haver discordâncias no grupo que comanda a investigação, disse estar disposto a conversar e afirmou que o parecer a ser apresentado não refletirá apenas sua posição ou a de qualquer outro senador, mas a da maioria da comissão.
Ainda que sustente não ter sido procurado – nem mesmo pelo presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), Omar Aziz (PSD-AM) – para a discussão dos pontos de discordância, o relator afirma que por ora não pretende retirar nada do parecer.
Calheiros avalia, aliás, sugestão do vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), para que o ministro da Economia, Paulo Guedes, continue sendo investigado após o término dos trabalhos da comissão.
“Que tenham posições diferentes é natural. Nós não somos iguais, nós não pensamos igualmente sobre tudo, nós somos um grupo heterogêneo. Então é natural que haja divergência”, disse Calheiros a jornalistas sobre a divisão que envolveu a cúpula da CPI, mais conhecida como G7, e resultou no adiamento da apreciação do parecer para a próxima semana.
Para o relator, essas diferenças são “superficiais” e facilmente sanáveis”. “O parecer terá que ser aprovado pela maioria. Não será nem meu, nem do Omar, nem do Randolfe. É da maioria da Comissão Parlamentar de Inquérito», sustentou Calheiros, acrescentando que irá analisar os votos em separado para eventualmente acolher algo que seu relatório não contemple.
“Eu, por enquanto, não estou admitindo retirar nada. A maioria retirará o que quiser. Mas a maioria, apenas a maioria. Da minha parte eu ainda tenho algumas coisas a acrescentar. Hoje mesmo o senador Randolfe Rodrigues sugeriu a continuidade da investigação com relação ao ministro da Economia. Da minha parte eu concordo. Mas vamos submeter isso à maioria.”
Senadores do grupo majoritário da CPI demonstraram desconforto com vazamento de trechos do relatório de Renan antes que tivessem acesso a seu conteúdo, o que resultou no adiamento da leitura e da votação do parecer.
Calheiros, que admite os efeitos negativo do vazamento do texto, ressaltou que tratava-se de uma minuta. Argumentou ainda que muitas das informações já haviam sido divulgadas por ele mesmo em declarações há pelo menos 20 dias e que trabalha com um grupo de pelo menos 50 pessoas, o que teria facilitado o vazamento.
Também deixou claro que, embora ainda não tenha sido procurado por colegas para debater as diferenças, está aberto a discutí-las.
“O vazamento não é bom. Mas já que vazou, nós vamos aproveitar essa circunstância para confrontar pontos de vista para que o relator acerte um posicionamento comum. A minha disposição é essa”, disse Calheiros. “Conversar sempre, conversar não arranca pedaço”, defendeu.
Indígenas – Um dos pontos que mais tem enfrentado resistência, principalmente da parte de Aziz, diz respeito à atribuição ao governo do crime de genocídio dos povos indígenas. Calheiros, no entanto, que tem sido assessorado por juristas e entidades da área do Direito, sustenta que há elementos suficientes para tipificar o crime. Citou, inclusive, decisão judicial sobre massacre em 1993 de povos indígenas.
“A Justiça brasileira decretou o genocídio quando garimpeiros assassinaram 12 indígenas yanomamis. Quer dizer, o que caracteriza o genocídio de indígena não é uma matança generalizada. São atos. E, no caso de agora, as omissões. É isso que caracteriza. E o posicionamento dos juristas, e todos que estudaram essa questão disseram, que é o caso da caracterização (de genocídio)”, explicou o relator.
“Qualquer um pode ser ponto de discordância, isso é natural, que o Omar tenha um ponto de vista e eu tenha outro. Mas o que vai prevalecer não é o ponto de vista dele nem o meu. é o da maioria da comissão.”
O senador Humberto Costa (PT-CE), que esteve em reunião com o presidente da CPI, afirmou à CNN que Aziz mantém a disposição de não discutir o parecer até sua leitura oficial, na quarta-feira, para então debater eventuais mudanças.
O senador petista afirmou, entretanto, que mantém, assim como Randolfe, o entendimento de que o melhor seria construir um texto que pudesse refletir o pensamento do G7, em vez de se perder energia no que chamou de “fogueira de vaidades”. (Reuters)
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