Política

Projeto do RRF enfrenta impasse na Assembleia

Projeto do RRF enfrenta impasse na Assembleia
Governo de Minas tem uma liminar concedida pelo STF que suspende temporariamente o pagamento de suas dívidas com a União | Crédito: Gil Leonardi/Imprensa MG

As atividades legislativas recomeçaram, mas a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG) e o governador Romeu Zema (Novo) continuam em meio a um impasse profundo, que trava a pauta de votações desde novembro do ano passado.

O pomo da discórdia é a votação do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), projeto de renegociação da dívida do Estado com a União, que chegou à casa em 2019 e, desde então, vem sendo empurrado com a barriga pelos deputados.

O último capítulo do imbróglio é a liminar pedida por Zema ao STF, em 2 de fevereiro, para que a Assembleia vote com prioridade a adesão. O que só acirrou a polêmica em torno do projeto, que se amplia com a proximidade das eleições: o projeto impede recomposições salariais há muito reclamadas e dificulta investimentos sociais, além de acenar com privatizações que podem embaraçar as perspectivas eleitorais dos deputados mineiros.

A matéria é tão complicada que mesmo a base aliada do governo não formou consenso quanto à questão – ninguém duvida nos corredores do Palácio da Inconfidência que o RRF está longe de encantar a maioria.  Alguns parlamentares o defendem com todas as forças, leais ao ideário liberal do governador novista. O deputado Guilherme da Cunha (Novo) sustenta que o pensamento do dinheiro infinito levou Minas a uma situação de insolvência e não votar o regime é jogar Minas à beira do abismo, com consequências desastrosas se o pagamento da dívida for exigido.

“Caso a liminar caia, serão devidos, imediatamente, R$ 26 bilhões, que deixaram de ser pagos na vigência dela. Minas não tem esse dinheiro e, se isso acontecer, os salários dos servidores, que voltaram a ser pagos em dia depois de seis anos, não apenas ficarão parcelados, havendo risco real de que simplesmente deixem de ser pagos. Há risco, também, que fornecedores da saúde, da educação e da segurança pública fiquem sem receber, comprometendo a continuidade desses serviços essenciais. Toda a população perderá, e muito”, garante Cunha.

Outros deputados, porém, receiam seus efeitos sobre políticas sociais. O líder da oposição André Quintão (PT) quer um cronograma mais aprofundado de debate. Ele teme que, ao congelar investimentos em políticas públicas por nove anos, o projeto inviabilize a criação de qualquer programa de ação continuada justamente agora, com Minas destroçada pela pandemia e pelas chuvas.

Para ele, o governo se empenhou pouco e abriu mão do caminho político para a renegociação da dívida do ponto de vista federativo. “Além das condições desfavoráveis, Minas tem sua autonomia ferida com um conselho de supervisão, formado por técnicos que terão poder de decisão em questões afeitas ao próprio governador e ao Legislativo”, afirma o deputado petista. “E será que é justo, no último ano de governo, criar condições permanentes para os próximos nove anos, a serem cumpridas por outros governos?”, pergunta.  

“Eu acho improvável que a liminar suspendendo o pagamento da dívida caia e, se cair, acho improvável que a União vá querer desorganizar as finanças do Estado. Nem o Supremo nem o governo federal vão chegar a estes extremos”, acredita Quintão.  

Guilherme da Cunha é um dos parlamentares que defendem a adesão do Estado ao RRF | Crédito: Ricardo Barbosa/ALMG

Especialistas têm opiniões divergentes

A discordância em relação ao assunto ganha corações e mentes também dos especialistas. “Talvez o governo não cobrasse a dívida neste momento, mas que sinalização isso traz para investidores? É a terceira maior economia do País dando calote no governo”, questiona o professor aposentado do Departamento de Economia do Setor Público da UFMG, William Ricardo de Sá.

Ele lamenta que a Assembleia tenha se tornado “um poço de atraso”. Para Sá, não houve renovação na agenda econômica e o Legislativo é hoje, em sua maioria, “uma oposição irresponsável e eleitoreira, querendo criar dificuldades para um governador cuja representação é menor do que seu capital político”.

Para o professor, o RRF é o jeito mais fácil de sair de uma situação de risco fiscal para uma situação de estabilidade. “É a salvação possível para não quebrar o Estado, no sentido de esculhambar a vida do cidadão. Como você vai lidar com uma greve da polícia, se ela não receber?”, pergunta. “É uma boa saída, basicamente te dá tempo e cria boas perspectivas com contrapartidas razoáveis. O mundo inteiro caminha por aí”, propõe Sá.

Já a economista e auditora fiscal Eulália Alvarenga acredita que o RRF “é um suicídio”. “Os governantes pensam apenas no caixa deles. Nós já pagamos muito e, mesmo assim, devemos muito”, sustenta. “Sem contar a dívida social, porque foi muito dinheiro que deixou de entrar nesses anos todos para a Educação e para a Saúde”, completa.

Segundo a economista, Minas paga 13% da receita líquida real, ou seja, o valor depende do que é arrecadado no mês. Com uma correção muito alta, o desembolso do Estado desde a década de 90, no governo Azeredo, mal pagou os juros, quanto mais o principal. Resultado: a dívida inicialmente negociada em R$ 14 bilhões, já está em mais de R$ 100 bilhões – o governo calcula em R$ 140 bilhões. “O contrato é leonino, então Minas está pagando juros e correção monetária também do que deixou de pagar”, aponta.

Mas existe alguma outra saída? “Sim”, diz Eulália Alvarenga. “O governo federal não faz Refis para os empresários, oferecendo condições mais confortáveis para eles pagarem suas dívidas? Por que não fazer uma negociação melhor com os estados, com descontos no principal e perdão de juros?”

Para ela, a saída é melhorar a arrecadação e as contas do Estado, mas muita coisa tem que ser discutida, inclusive alongar a dívida. “Somos uma federação, em que um ente tem que ajudar o outro e não um sistema em que a União é madrasta e vai extorquir o Estado”, conclui.  

Com 30 anos de experiência na área financeira – ele se aposentou na Secretaria de Fazenda da PBH -, o engenheiro Lázaro Borges acha que Minas tem que aderir ao regime, mesmo que vá rediscuti-lo mais adiante. “O Estado está bem, está pagando os salários, os serviços, além de duas parcelas de ICMS por mês às prefeituras. Acredito inclusive que o Supremo segurou a liminar por este motivo”, aponta Borges. “A Assembleia tem a obrigação de discutir a pauta, não pode se esconder do debate e se abster de votar”, completa. 

Tudo indica que essa queda de braços não se resolverá tão cedo. Uma pista para a posição da Assembleia está nas palavras do presidente do parlamento mineiro, na abertura dos trabalhos este ano. Aliás, está nas mãos (e na caneta) de Agostinho Patrus o destravamento da pauta tão desejada pelo governo.

Citando os 200 anos da independência e os 100 anos da Semana de Arte Moderna, Patrus afirmou que a Assembléia, inspirada nesses dois acontecimentos históricos, se pautará pela defesa da democracia e da autonomia do Poder Legislativo. “Independência e união são as inspirações para a sessão legislativa que se inicia”, declarou.

Regime de urgência

No último dia 16 de janeiro, o Supremo Tribunal Federal (STF), através do ministro Luís Roberto Barroso, estipulou o prazo de seis meses para Minas Gerais ingressar no Regime de Recuperação Fiscal. A dívida de Minas com a União – calculada em R$ 140 bilhões – não tem sido paga nos últimos três anos por causa de uma liminar em curso na corte.

Alegando pressão do STF, o governador Zema radicalizou e, em outubro, se utilizou de um instrumento regimental – o regime de urgência – para travar a pauta do Legislativo. Ou seja, enquanto os deputados não discutirem o projeto, nada poderá ser votado no parlamento mineiro, com exceção de questões emergenciais relacionadas ao chamado “rito Covid” – caso do congelamento do IPVA, por exemplo.

O RRF é visto pela equipe de Romeu Zema (Novo) como a única solução para aliviar os problemas financeiros do Estado. A posição do Governo de Minas, expressa em nota oficial, é clara: a adesão ao RRF é crucial para a previsibilidade das contas públicas mineiras.

Se as liminares caírem, diz a nota, o governo terá que pagar um montante de R$ 34,12 bilhões, que representa o valor não pago até agora, somado aos encargos da dívida. Se o Estado tiver que pagar esse valor de uma única vez, as contas públicas entrariam em colapso, colocando em risco a oferta de serviços públicos.

O governo mineiro ressalta que a adesão ao RRF não impede a recomposição salarial para os servidores, nem tampouco a realização de concursos públicos, desde que previstos no planejamento do regime, e não inclui a privatização da Cemig ou da Copasa, ou a autorização para que o Estado faça privatizações sem a devida discussão com a sociedade, o Legislativo e os demais poderes.

Mas é certo que as medidas da negociação são impopulares, especialmente junto aos servidores públicos. A adesão ao RRF limitará o crescimento das despesas aos índices de inflação, impedindo recomposições já reivindicadas; poderá reduzir benefícios com uma reforma administrativa e terá que deixar claro uma disposição privatizadora, nem que seja da Codemig – que já pode ter 49% de suas ações alienadas – já que a venda de estatais como Cemig e Copasa têm que passar por referendo.

No último dia 2 de fevereiro, a Advocacia Geral do Estado (AGE) acionou o STF, alegando que a Assembleia descumpre a Constituição ao não analisar o RRF. Definido como relator da peça, o ministro Nunes Marques recebeu uma petição da ALMG, solicitando ser ouvida antes do despacho da liminar. O STF deu à Assembleia um prazo de cinco dias, a partir da última sexta-feira (4), para que ela se manifeste a respeito do projeto.  

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